Eu moro em um lugar lindo, cercado pela Mata Atlântica, um território cortado por três grandes rios e tantos outros afluentes. É uma terra originalmente indígena, uma sociedade primariamente quilombola. Fica na serra fluminense, tem um clima agradável, uma natureza exuberante, está longe dos problemas da cidade grande – a capital também linda, mas caótica, ensanguentada -, porém tem tudo de que se precisa: bons restaurantes, academias, spas, alimentos orgânicos…
Infelizmente, essa cidade está toda loteada, fatiada, há uma proliferação de condomínios luxuosos por todo canto. Toda hora vejo propagandas do tipo, “venha comprar um lote aqui”, num condomínio ali, no outro lá, “já tem casas construídas prontas para morar, com piscina privativa, aquele tem heliponto e campo de golf, todos têm exclusividade, não é isso que te torna diferente, único, e tudo pode ser teu”, ainda que já o fosse de alguém. Alguém de quem não se fala mais, uma memória propositalmente apagada. Alguém que se tornará o novo empregado de um casal muito rico da elite carioca, dentro das suas próprias terras ancestrais.
Eu gosto de lugares lindos, por isso quis passar uma semana em Paraty, patrimônio mundial misto, porque lá tem Mata Atlântica e Cultura Caiçara preservadas, mesmo que por duras penas. Pois são nesses lugares lindos onde encontramos os maiores conflitos entre cobiçadores, grileiros, invasores, e comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas. É que os primeiros não respeitam a história secular dos povos que ali habitam e inventam uma diversidade de malabarismos jurídicos para tomar essas terras ancestrais. No entanto, a expulsão não é completa, ela é ardilosa, pois mantém a comunidade ali por perto e, uma vez desmantelada a sua cultura, seus modos de vida e de uso da terra, dos rios e do mar, as pessoas, alienadas do seu pertencimento, tornam-se mão de obra explorada pelos empreendimentos e seus resultados: mansões de magnatas, pousadas eco-resort-spa, restaurantes esnobes.
Eu conhecia o problema da especulação imobiliária na Costa Verde bem antes mesmo de conhecer o problema do quilombo aqui da cidade onde moro, Petrópolis, que agora é o tema da minha tese. Eu sempre “torci” pelos Caiçaras! Em cada olhar das pessoas, eu via tristeza, preocupação, mas também muita força e muita determinação. A primeira vez que fui a um território caiçara foi em 2003, em Ubatuba, eu tinha 11 anos. Depois pude conhecer outros, como Paraty, Angra dos Reis, Morretes… Dava sempre vontade de voltar. Cada vilarejo em pé, cada restaurante com essa assinatura – culinária caiçara –, até o estacionamento da praia tocado por um caiçara, dava-me orgulho e esperança, porque sei o tanto de luta e de resistência que havia para que ele estivesse ali, e a gente pudesse pagar feliz os R$10 para deixar o carro lá e curtir a praia.
Só que tudo isso ainda continua terrível, porque eu sempre fui mais uma turista branca de massa querendo aproveitar as praias lindas e calmas, e depois eu ia embora e lia outra notícia sobre um leilão de terrenos que aconteceu em uma ilha tradicional caiçara com o aval do Poder Judiciário. Um leilão de terrenos com pessoas dentro, cujas famílias estão ali talvez na 4ª geração. Como isso é possível?
Lugares lindos sempre foram alvo de cobiça, grilagem, neoinvasões brancas que resultam em cercamentos e expulsões. Terras cercadas, mares cercados. Praias públicas cujos acessos se tornam quase proibidos, como a Praia de Laranjeiras, em Trindade, seguranças assediadores que conseguem estragar qualquer tentativa de passeio, mansões em frente ao mar construídas no lugar de casas caiçaras, tem casa à venda que custa R$25 milhões, ricos que passam lá o fim de semana e nem põem seus pés na areia, caiçaras que passam a morar longe do mar e do rio e tem sua cultura e seu modo de vida ancestral aniquilados, ricos que querem ser sempre servidos, caiçaras que se tornam seus novos empregados. Isso é algo muito perverso e cruel. O Estado nunca poderia ter sido tão permissivo assim.
Em nossa viagem a Paraty, em setembro de 2025, queria conhecer lugares menos visitados, menos aclamados, consequentemente, menos lotados e saturados. Com Luquinhas, sempre busco ver quais são as praias mais calmas, com mais sombra e menos barracas – gostamos de ficar mais tranquilos em nossa canga gigante, uma sombra natural embaixo de alguma árvore sempre vai bem. Nas avaliações do Google Maps, uma praia me chamou a atenção: a praia de São Gonçalinho, com águas calmas, mornas, ótima para crianças. Pensei, vamos para lá!

Ao chegar, uma boa surpresa: estacionamento tranquilo e até gratuito e pessoas muito simpáticas que nos receberam no único bar que tem lá, o Bar Duzé. Porém, poderíamos ficar à vontade se não quiséssemos nos sentar em alguma mesa. No cardápio, opções simples com preços para lá de “normais”. Um ambiente realmente acolhedor, algo que não consigo exprimir muito bem em palavras. Nosso bebê sentiu tudo isso e logo ficou muito à vontade. Não teve medo de chegar perto do mar, ainda mais agora que aprendeu a mergulhar em suas aulas de natação. Podíamos nadar com tranquilidade, nenhum barco poderia chegar à área do mar reservada para banhistas.

As águas estavam inexplicavelmente mornas, diria quase quentes, o que não esperava em um fim de inverno. No almoço, o feijão estava tão bem temperado que nem insisti para o Lucas comer tudo, pois era bom que sobrava um pouco para mim! Depois, ele dormiu por mais de uma hora na canga, coberto por outra canga, uma toalha de secagem rápida e um boné. Eu e Leo nos sentamos em cadeiras vermelhas de plástico com nossos pés dentro do mar, tomamos uma cerveja no copo lagoinha e conversamos sobre a vida. Falei umas 15 vezes sobre o quanto estava gostando daquela praia e ele me disse, – você viu que aqui é uma praia caiçara né? Quando fui ao banheiro, li uma placa que conta a história do lugar. Aqui foi alvo de muita disputa judicial devido à especulação imobiliária, mas o dono original, caiçara, o Zé do Gonçalinho, conseguiu vencê-las.

A praia, então, tornou-se um paraíso caiçara, do qual todas/os podemos aproveitar, com respeito e responsabilidade. Bem, eu sabia que havia alguma explicação maior para que não apenas a praia em si e sua beleza natural, mas toda sua atmosfera, fossem assim, tão acolhedoras e especiais. Caso contrário, ali poderia ter se tornado mais uma “propriedade quase privada”, com condomínios luxentos em volta, seguranças mal-encarados, meio ambiente degradado e povos tradicionais novamente espoliados de suas terras.
Nós gostamos tanto de lá que voltamos no dia seguinte, após termos visitado duas cachoeiras de águas bem geladas na parte da manhã. Estava brincando com o Lucas na areia, quando vi um plástico enterrado, pensei, mais um lixo que vai parar no mar, e o puxei para jogar fora. Quando vi melhor, era um carrinho de brinquedo que, a essa altura, já tinha se perdido de seu dono. O Lucas adorou esse “tesouro” encontrado, ainda que estivesse faltando uma roda. Brincou bastante com ele e o levou ao Quilombo do Campinho no dia seguinte, onde fomos almoçar. Acabou que esquecemos o carrinho lá, perto do balanço. Com a mesma facilidade que o encontramos, também o perdemos – talvez isso aconteça quando algo não deveria ser nosso.

Que o território de Paraty permaneça com quem o tem por direito material e imaterial. Uma terra que é tão bem cuidada e que também cuida. Que tenhamos a tranquilidade e a serenidade de possuir apenas aquilo que realmente nos pertence.