Imagem: Em Rede (créditos)
As teorias pós-coloniais e decoloniais propuseram a construção de uma nova forma de pensamento, e denunciaram que o conhecimento tido como racional e universal era, na verdade, muito bem localizado. O conhecimento europeizado previa um sujeito universal, neutro, objetivo, o qual, na verdade, sempre fora homem, branco, cis, heterossexual, cristão, de classes altas e habitante do Norte Global.
É prudente, contudo, distinguir essas duas vertentes teóricas. O pós-colonialismo tem uma vertente teórica diversa, mas podemos dizer que essa escola de pensamento se iniciou a partir da influência dos estudos pós-estruturalistas, cujos nomes de destaque estão entre Michel Foucault e Jacques Derrida. O principal objetivo era a identificação das formas de poder e de opressão entre o colonizado e o colonizador, e a conscientização sobre como essa relação era a base da formação das teorias de superioridade europeia em relação aos demais povos. Entre os teóricos de destaque estão Franz Fanon, Aimé Césaire, Edward Said e o Grupo de Estudos Subalternos, estabelecido na Índia. Os estudos pós-coloniais se iniciaram na década de 1960 e estiveram bastantes centrados nas décadas de 1970 e 1980.
Os estudos decoloniais tiveram início com pesquisadores latino-americanos estabelecidos em universidades estadunidenses. No fim da década de 1990, foi constituído o grupo Modernidade/Colonialidade (ou “Proyecto M/C), cujos membros se destacam entre Edgard Lander, Walter Mignolo, Enrique Dussel, Aníbal Quijano, María Lugones, Catherine Walsh, Arturo Escobar, Ramón Grosfoguel e Nelson Maldonado-Torres. Os estudos decoloniais foram influenciados pelo pós-colonialismo, mas alertaram que mesmo essa corrente teórica continuava a ter como referências apenas teóricos europeus. Era, então, necessária a construção de uma nova epistemologia, advinda realmente do Sul Global, verdadeiramente emancipatória, com o afastamento das teorias e das influências eurocentradas.
Os estudos pós-coloniais versam que, a partir da consolidação da filosofia moderna no século XVII (Lugones, 2020), vários binarismos e dualismos foram estabelecidos. Essas dicotomias pressupunham ordens de superioridade e inferioridade entre europeus, considerados civilizados, modernos, racionais; e os não-europeus, primitivos, tradicionais e “irracionais”. Todo o conhecimento que não fosse o racional e o científico era desconsiderado, subjugado ou mesmo aculturado.
Nesse ínterim, para as teorias decoloniais, os conceitos de modernidade e de civilidade vêm permeados de universalismos, essencialismos e dicotomias em que tudo que se diferir da sociedade europeia ocidental, subjetivada no homem europeu branco, cishétero e de classe alta, será considerado inferior, primitivo, selvagem. Essa é a grande chave para o estabelecimento do racismo, do sexismo e do etnicismo, os quais resultaram na colonialidade do ser, do saber e do poder na América Latina. Para se manter a colonialidade do poder/saber, a colonização europeia ou destruiu o conhecimento dos povos originários, objetivando-os e classificando-os como incapacitados; ou impôs a hegemonia do conhecimento eurocentrado, colocando os saberes originários como inferiores, tradicionais e como não ciência.
Apesar das suas diferenças, as teorias pós-coloniais e as decoloniais demarcam que a produção do conhecimento dominante se dá por meio da racionalidade masculina, e buscam construir o conhecimento a partir do olhar situado do sujeito, bem como de suas diferenças: o foco está no multiculturalismo e na pluridiversidade.
Um pouco sobre a Teoria de Edward Said
Edward Said (1990) desenvolveu a tese central de que o Oriente é invenção fetichizada europeia. Dessa forma, o Orientalismo, que é uma produção ocidental na qual, a partir de suas próprias lentes, são fabricadas, de forma ficcional, as demais culturas e o “outro”, parte de uma distinção ontológica e epistemológica feita entre Oriente e Ocidente. Assim, o Oriente é concebido como um lugar especial, baseado na experiência europeia. É uma representação do Oriente como adjacente à Europa, mas não somente isso: é onde estão suas colônias mais antigas, suas concorrentes culturais, mas que se tornaram espaços de poder dominados. É um lugar onde o Outro é melhor representando sempre a partir da visão europeizante.
Não obstante, o Oriente possibilitou que a Europa se definisse a partir do contraste, o que carrega, também, a ideia de superioridade. Assim, Said nos mostra que houve uma espécie de domesticação de tudo do Oriente pelo Ocidente, inclusive de seus saberes, de sua filosofia. A partir da centralidade no discurso, o discurso imaginativo ideológico e dominante europeu sobre o Oriente foi o que construiu a própria noção de Oriente.
O Orientalismo é mais um sinal de poder europeu sobre o oriente do que um discurso verídico sobre o Oriente. Contudo, o discurso inverídico europeu ganhou status de conhecimento acadêmico, com força teórica e prática, o que possibilitou sua perenização e a sua transformação em “verdade”. A ideia da superioridade da identidade europeia em comparação a todos os demais povos se consolidou, devido à hegemonia das ideias europeias sobre os demais povos, como os do Oriente. Essa hegemonia não encontrou resistência, o que, em uma espécie de ciclo, reiterou a soberania europeia em todos os sentidos.
Ao contrário do pressuposto do conhecimento universal, neutro e racional, Said demarca que é impossível produzir um conhecimento “apolítico”, dissociado de ideologias, de filiações políticas e de classe social. O interesse da Europa e dos EUA pelo Oriente era, além de político, cultural: era a cultura fundida com a política. O Orientalismo é, portanto, um intercâmbio de poder que vai além do político, e perpassa o poder cultural, intelectual e moral. O imperialismo político domina o campo da produção intelectual e erudita, e não há como separar as teorias filosóficas de seu contexto político – das ideologias que justificavam e endossavam as diferenciações raciais, a escravidão e a dominação colonial, por exemplo.
Todos que escrevem sobre o oriente pressupõem ter conhecimento sobre a região e se utilizam de textos, de ideias, das estéticas, de fantasias consolidadas no discurso e nas instituições, o que lhes confere força e autoridade. A autoridade, no entanto, não é natural, orgânica. Ela é produzida e disseminada; é instrumental e persuasiva; produz gostos e valores; e é ligada a ideias e a tradições tidas como verdadeiras, tradições estas consolidadas pela hegemonia europeia na produção do conhecimento e do pensamento.
O orientalista pensa e fala pelo Oriente, e torna seus mistérios simples para o Ocidente. São meras representações, nunca descrições naturais do Oriente. Todo o orientalismo está fora do Oriente, e o seu sentido é dado pelo Ocidente, por meio de instituições, tradições, códigos consentidos, ideais e doutrinas dominantes. Portanto, Said nos alerta sobre a estrutura de dominação cultural europeia sobre os povos dominados, e o perigo de a utilizarmos sobre nós mesmas/os e sobre os outros. Precisamos, finalmente, desaprender o modo dominativo inerente.
Um pouco sobre a Teoria de Aníbal Quijano
Como nos mostra Aníbal Quijano (2017), a colonialidade se funda nas classificações étnicas e raciais. O capitalismo se tornou mundial e surgiu um novo padrão de dominação, também ancorado na modernidade/colonialidade. O conhecimento construído dentro do sistema capitalista foi feito unicamente por filósofos ocidentais, no qual havia apenas uma única racionalidade válida: a masculina, branca, cristã e europeia.
A própria ciência é, então, denunciada como colonizadora. É uma ciência universal, totalizante, racional e secularizada. Além de estabelecer apenas uma única via de conhecimento, negaram-se todos os demais saberes, os quais passaram a ser vistos como primitivos e atrasados. A partir dessa racionalidade totalizadora, linear, cartesiana, matematizada, era possível subjugar e controlar tudo aquilo considerado inferior, mas essencial para a acumulação e a produção capitalista: os povos originários, a Natureza e seus “recursos”, bem como todos os seres sencientes.
Contudo, o autor ressalta que o eurocentrismo não se ancora somente no etnocentrismo, tampouco é um modo de pensar somente dos europeus, mas sim de todos que foram educados sob a sua hegemonia. Seu padrão de poder foi naturalizado, sem margem para ser questionado, sem outras saídas possíveis. Assim, mesmo após o fim da colonização formal europeia, o conhecimento produzido nas ex-colônias continuou a ser eurocentrado. Portanto, permaneceu a colonialidade do ser, do saber e do poder.
Quijano nos demonstra que o poder envolve a disputa dos seguintes âmbitos: o trabalho e os seus produtos; a exploração da natureza e de seus recursos; o gênero, sua reprodução e seus produtos; as subjetividades e o conhecimento; e a autoridade e os seus instrumentos, o que garante a reprodução do padrão de poder. Nas teorias europeias modernas, mesmo aquelas consideradas de esquerda, como as marxistas, a lógica das relações sociais, trabalhistas e produtivistas, os modos de constituição da sociedade e as formas de produção do conhecimento são sempre homogêneas e totalizantes. É como se houvesse apenas um caminho a ser seguido: o caminho da evolução, linear, etapista, enfim, “racional”. Por isso, o decolonialismo nos alerta para a necessidade de negar a totalidade e a homogeneidade das relações e da história, produzidas a partir de uma lógica de poder político, econômico e ideológico das nações do Norte Global sobre aquelas do Sul Global.
Podemos dizer que o grande trunfo do racionalismo europeu foi a construção de uma dualidade entre Europa e Não-Europa, com o estabelecimento da superioridade de tudo que é europeu, e a inferioridade de tudo que se difere disso – os “outros” não europeus. A Europa era, então, o centro do capitalismo e também das relações de classe. Outras formas de trabalho, que não as assalariadas, não eram consideradas no materialismo histórico. A partir da negação da coetaneidade, o que não era Europa estava em um espaço-temporal diferente, atrasado, cujo ponto de chegada, por meio de uma evolução linear, seria, obviamente, a própria Europa.
A dominação territorial foi legitimada com base na raça, que foi criada para ser o principal elemento de subjugação e subordinação. É por isso que outro pilar da teoria decolonial de Quijano é a invenção da raça, pelos europeus, a partir da conquista da América. Com a inserção da América Latina no capitalismo mundial, por meio da dominação colonial, as pessoas passaram a ser classificadas em três linhas distintas, mas todas articuladas em uma estrutura comum, sustentada pela colonialidade do poder: raça, gênero e trabalho (classe). Assim, para o autor, “a racialização das relações de poder entre as novas identidades sociais e geoculturais foi o sustento e a referência legitimadora fundamental do caráter eurocentrado do padrão de poder, material e intersubjetivo. Ou seja, da sua colonialidade”. (Quijano, 2017, p. 113).
Quijano (2017) ressalta que esse padrão de dominação imposto na América se espalhou mundialmente, e todos os povos passaram a ser classificados por meio das identidades raciais, cujo sustento se dá pela dicotomia dominante/europeu/superior e dominado/não-europeu/inferior. É por isso que a luta contra a dominação e a exploração; a superação do capitalismo exploratório e opressor; e, finalmente, a destruição da colonialidade do poder somente serão possíveis quando houver “a devolução aos próprios indivíduos, de modo direto e imediato, do controle da instancias básicas da sua existência social: trabalho, sexo, subjetividade e autoridade” (Quijano, 2017, p. 121).
Conclusões e algumas limitações teóricas
De maneira geral, as teorias pós-coloniais e as decoloniais trazem novas lentes para que possamos identificar os padrões de subjugação e de opressão na construção do pensamento dominante, em relação aos povos colonizados, suas definições fetichizadas e fictícias, e suas aculturações ou suas apropriações culturais. Elas permitem a construção de um novo pensamento e de novas narrativas, nas quais o multiculturalismo e a pluridiversidade são a grande base teórica, além de considerar outras cosmovisões e outros modos de ser e de viver no mundo, a partir dos ensinamentos dos povos autóctones. Todo conhecimento é situado, localizado e político. A pretensão da neutralidade, da universalidade, da totalidade e da unidade esconde a face oculta do colonialismo e os padrões de poder que estão por trás das teorias europeias. Por isso, essas teorias trazem uma decolonização epistemológica, e rompem com a homogeneização de apenas uma cosmovisão, que é aquela da Europa ocidental (Mignolo, 2008).
Porém, essas teorias também possuem algumas limitações. Dirlik (1997) aponta que as teorias pós-coloniais, por mais que tenham como o cerne a crítica ao eurocentrismo, foram elaboradas nas grandes e nas melhores instituições dos países do Norte Global. Portanto, ainda estiveram sobre grande influência das teorias dominantes e de seus principais autores. Outra crítica é a de que as teorias pós-coloniais conseguiram se desprender das ideias de totalidade, mas também deixaram de considerar o capitalismo como o principal sistema que estrutura e legitima as relações de poder dicotômicas. O capitalismo foi fundamental para a consolidação do poder europeu e do eurocentrismo e, apesar da sua aparente fragmentação, esse sistema é o princípio estruturador das relações globais, inclusive as atuais. Portanto, muitos intelectuais pós-coloniais não consideraram o papel do capitalismo como fundacional da história e das relações coloniais.
O autor também ressalta que a identidade pós-colonial não é estrutural, mas discursiva. Portanto, na construção das teorias pós-coloniais, houve um foco excessivo nas narrativas, com a consequente perda da análise das relações concretas. Por fim, o Dirlik ressalta que as teorias pós-coloniais, apesar da grande crítica à homogeneidade eurocêntrica, também tentaram se homogeneizar, ao desejar se estabelecer como ciência. Essa homogeneização pode ter ocorrido quando seus autores não se atentaram às particularidades das diferentes localidades e das diferentes culturas, justamente por estarem localizados nos países do Norte Global.
Por fim, as teorias decoloniais sofrem críticas por, às vezes, negarem as teorias europeias anteriormente produzidas e que foram fundamentais para a construção das epistemologias das Ciências Sociais, da Filosofia, da História, apesar das válidas contestações. Outra crítica seria que, ao tentarem resgatar as epistemologias dos povos originários, alguns autores acabaram por tentar voltar a um “passado idílico”, que não fora afetado pela colonialidade nem pela modernidade europeias. Por fim, ainda que os autores tenham sempre demarcado a pluridiversidade como a grande sustentação das teorias decoloniais, há críticas quanto ao possível essencialismo existente na busca pelo direito à diferença dos movimentos identitários, os quais estão abarcados pelo decolonialismo.
Referências Bibliográficas
DIRLIK, Arif. “A aura pós-colonial na era do capitalismo global”. Novos Estudos Cebrap, no. 49, 1997,pp. 7-32.
LUGONES, Maria. Colonialidade e Gênero. In: Hollanda, H. B de (org.). Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.
MIGNOLO, Walter. Novas reflexões sobre a ideia de America Latina: direita, esquerda e a opção descolonial. Cadernos CRH, 21, 53, mai/agosto de 2008.
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: Santos, B. de S. & Meneses, M. P. (org). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2017