Imagem: Correio da CidadaniaAlexandre Araújo Costa

O debate sobre a noção de Antropoceno se insere em uma discussão mais ampla sobre as próprias epistemologias das Ciências Sociais. Ademais, é um debate que envolve questões também ontológicas, que tangenciam reflexões sobre o mundo em que vivemos; quais mundos ainda poderão existir; e, principalmente, qual o papel do ser humano, bem como a dimensão de seus impactos, nas transformações geológicas do Planeta Terra.

Dessa maneira, podemos dizer que os debates sobre o Antropoceno são amplos, e versam sobre: a periodização geológica; a crise planetária e a sustentabilidade; a história moderna do mundo e as origens da crise ecológica; e o diálogo entre as ciências humanas e as ciências naturais, bem como os questionamentos sobre as clássicas divisões entre natureza e sociedade e natureza e cultura, tão caras às próprias Ciências Sociais e às teorizações sobre a sociedade moderna.

Os limites da divisão entre Natureza e Cultura

Nas teorias filosóficas clássicas e ocidentais, a Natureza sempre foi vista como “dada”, “inata”, que existe por si mesma. Como nos ensina Roy Wagner (1975), devemos contestar a ideia de uma sequência evolutiva do ser humano, a qual pressupõe que, inicialmente, existia um ser humano natural, sem refinamento, movido por impulsos e instintos, enfim: sem cultura, em oposição ao ser humano moderno, cultural, civilizado. Para tanto, o antropólogo exemplifica que há uma percepção de comportamentos culturais também nos animais.

Para o autor, o ser humano sempre foi cultural, assim como sempre foi natural. Desde os primórdios, o ser humano sempre teve refinamentos e sofisticações: sempre pôde fazer escolhas. Assim, há também uma contestação da ideia linear de progresso e de evolução humana, que implica a oposição entre o ser humano primitivo, sem cultura, e o ser humano moderno, urbano, educado, cultural.

Wagner nos relata que a antropologia ganhou vida por meio da invenção da cultura, e esta se tornou seu idioma geral. As culturas existem, pois foram inventadas e tais invenções foram efetivas. E essa cultura inventada, por meio da qual a constituição física do ser humano se firmou, incorpora tanto controles conscientes como os inconscientes sobre sua auto invenção. Assim, não apenas ferramentas, casas, pinturas, roupas, mas também características como medo, raiva, agressividade, desejo são tão artificiais, quanto naturais. A constituição física não pode ser separada da cultura. Não divergimos da natureza, e esta muda tanto quanto o ser humano.

Face à clássica oposição entre natureza a cultura, que é a essência na nossa ideologia, o argumento de Wagner é que nunca existiu um ser humano exclusivamente natural, nem uma cultura exclusivamente artificial. O ponto de vista evolutivo é uma inversão da invenção subliminar do eu e da inclinação natural que acompanha a nossa vida cotidiana. Destarte, as Ciências Sociais em geral, por décadas, estabeleceram, em suas teorias, uma distinção entre natureza, que seria uma ordem fenomênica e inata; da cultura, que seria algo artificial e aperfeiçoável. Isso concedeu um poder e uma autoridade àqueles que interpretam a natureza e suas formas inatas, o que os tornaram, também, “árbitros da cultura”.

No entanto, Wagner chama a atenção para o fato de que também inventamos e modificamos a Natureza. Nesse sentido, Latour (2014) nos elucida que a Natureza também é fabricada, tanto pelos seres humanos, quanto pelos seres não humanos. Para os povos que não aceitam a moderna separação entre natureza e cultura, árvores, plantas em geral, e animais e seres sencientes possuem identidades entre si e também modificam a Natureza. Já Tsing (2020) ressalta que o Antropoceno é marcado por ações de seres vivos e não vivos, os quais se emaranham em projetos imperiais e industriais humanos. Portanto, o estudo do antropoceno deve conter as infraestruturas – alterações na terra, na água e na atmosfera – e os seres refeitos por essas infraestruturas, entre os quais estão os componentes não humanos e as suas agências.

Os limites da separação entre a ciência e a política

Não obstante, Latour (2014) nos mostra que a separação entre ciência e política, que permeia tanto as ciências humanas, quanto as naturais, contribuiu para a manutenção da separação entre fatos e valores. Como exemplo, o autor demonstra que o debate entre quem alerta sobre as mudanças climáticas – cientistas – e os negacionistas não é um debate racional, já que os cientistas estão sendo destituídos de poder. Porém, ambos os lados fazem a separação entre a ciência, que deveria conter somente a razão, a racionalidade, os fatos; e a política, que somete conteria ideologia e paixões.

Nada é imparcial, neutro, o que inclui a ciência, seu modo de produção, seus pontos de vistas e o poder que permite que ela seja produzida (Costa, 2021). A oposição entre ciência e política cria um ceticismo nas pessoas. A ciência tampouco é um campo de verdades incontestáveis e incontroversas e, ao se distanciar totalmente da política, abre brechas para o negacionismo climático e a contestação no debate sobre o Antropoceno. Latour (2014) ressalta que, enquanto os negacionistas podem usar a política e a ideologia, a seu favor, os cientistas climatólogos, para defender uma ciência “apolítica” e puramente racional, tentam se afastar delas o máximo que podem.

Essa racionalidade excessiva, característica da modernidade e da ciência moderna, e que buscou repelir qualquer traço de subjetividade no tempo e no espaço, fez com que o espaço se tornasse vazio e o tempo se tornasse atemporal. Isso trouxe oportunidades para que essa ciência, que tenta se mostrar como universal, mas ao mesmo tempo vem de lugar nenhum, fosse contestada sem qualquer pudor. Portanto, Latour adverte que não se pode esperar sanar o debate entre cientistas e negacionistas para, então, traçar-se uma política climática: a ciência precisa reconhecer que não existem verdades absolutas e que, como já mostrado por Haraway (1995), são os saberes localizados, também politizados, os únicos capazes de se realmente atingir a objetividade científica.

Como nos elucida Costa (2021), a ciência não deve ser capaz de produzir verdades apenas por meio de uma autoridade incontestável, mas sim por sua capacidade de oferecer respostas confiáveis aos problemas que propõe solucionar. Para tanto, é mister o afastamento de pretensiosos universalismos apolíticos, de normas abstratas vindas de autoridades generalistas – o que abre brechas para a negação dessa autoridade e o negacionismo como um todo -, e a consideração de diferentes saberes, de outras cosmopolíticas e outras cosmovisões. Assim, quanto mais a verdade for plural, multidimensional, contextualizada, maior a possibilidade de ela produzir um engajamento comum, uma convergência política que não desconsidera diferentes ontologias, e que levará às transformações sociais. É por isso que

“O desafio cosmopolítico colocado pelo Antropoceno, portanto, diz respeito à capacidade de criar alianças e histórias inusitadas e não-consensuais, valendo-nos não da negação, que é a arma empregada pelo inimigo, mas da atenção aos meios de construir e manter realidades boas o bastante para nós e para os seres que fazem conosco essa Terra que, apesar de única, está longe de ser unívoca (Costa, 2021, p. 47)”.

A necessidade da contextualização histórica e geográfica no debate sobre o Antropoceno

Latour (2014) também ressalta que o debate sobre o Antropoceno pode ter suas “ciladas”, mas consegue chamar a atenção para a necessidade da não separação entre a Natureza e a Humanidade. Nesse ínterim, Moore (2022) ressalta que o debate do antropoceno não pode ser dissociado da expansão colonial e das transformações do capitalismo histórico. O ponto de partida não deve ser a Revolução Industrial dos séculos XVIII e XIX, mas sim a expansão colonial, o genocídio dos povos autóctones, a escravização dos povos africanos, e as transformações das paisagens, que remontam aos séculos XV, XVI e XVII. Da mesma forma, o Antropoceno é o resultado das diversas transformações, causadas pela ação humana, nas paisagens, mas também nas técnicas de trabalho e naquelas resultantes das apropriações de recursos. O capitalismo sempre fora mais que um sistema econômico: ele é uma forma de organização da sociedade e também da natureza.

Moore nos mostra que o capitalismo deve ser visto como um processo e um sistema baseado em quatro naturezas baratas: os alimentos; a energia; a matéria-prima; e o trabalho. O imperialismo, face de expansão agressiva do capitalismo, possibilitou a formação das classes e a apropriação dessas quatro naturezas baratas. Também acrescentamos que a criação das raças foi essencial para a legitimação dessas explorações.

Podemos dizer que o Capitalismo está no cerne de todas as explorações. Em alguns debates sobre o Antropoceno, a não consideração desse fato nos leva a uma espécie de negacionismo histórico e à criação de teorias a-históricas. Moore critica a visão eurocêntrica e a separação entre a ciência e a política que permeia as teorias universais e racionais. Assim, essa racionalização antipolítica no trato dos problemas socioecológicos impede que enxerguemos o papel central da história do capitalismo para o surgimento das crises sociais e ecológicas, bem como das conjunturas políticas anteriores às mudanças climáticas, tão caras à ciência atualmente. Sem essa conscientização, tornamo-nos reféns de soluções capitalistas para os problemas que o próprio capitalismo causou, como aquelas que versam sobre o “Desenvolvimento Sustentável”, ou os próprios debates sobre o Antropoceno, o qual, por vezes, generaliza padrões de consumo do Norte Global a todas as regiões do Planeta, sem demarcar as explorações históricas que estas sofreram, bem como os seres humanos e os seres não humanos que nelas habitam.

Da mesma forma, Moore ressalta a urgência em rompermos com a premissa dualista moderna, em que Sociedade e Natureza são encaradas como entes separados, e não apenas isso. Somente alguns seres humanos, os chamados “civilizados”: homens brancos, europeus, de classes altas, fariam parte da “sociedade”, enquanto todos os demais – os outros humanos ou não humanos, fariam parte da “natureza”, a qual deveria ser legitimamente dominada e explorada pela civilização. E o capitalismo foi o meio pelo qual a dominação – do gênero, da raça, da classe, da natureza -, a exploração e o processo de acumulação se materializaram.

Tsing (2020) reafirma que o Antropoceno criou as suas manchas, que podem ser exemplificadas por paisagens não naturais como as plantations e por subúrbios e complexos industriais, todas advindas da expansão do sistema capitalista. A simplificação nas culturas, materializadas na plantation, fazia parte de um processo de alienação dos trabalhadores, os quais não mais prestavam atenção na multiplicidade do ritmo das plantas, o que gerou tanto uma alienação humana, quanto uma alienação ecológica.

Os chamados detonadores do Antropoceno fazem parte de todo um desenvolvimento infra estrutural, que teve como base as invasões, a constituição de impérios ultramarinos, a acumulação do capital e a aceleração da expansão capitalista, todas possibilitadas pela colonização. Essa aceleração da acumulação capitalista inclui a gestão de rejeitos – ou a falta dela, e o desenvolvimento de produtos de longa vida, como plástico e radioatividade, que se perpetuarão no planeta Terra e já afeta toda a biodiversidade.

Tsing afirma que todas as consequências do Antropoceno advêm de projetos coloniais e militares baseados em raça e gênero. Moore, por outro lado, ressalta que devemos evitar tratar gênero e raça de forma essencialista, e que não podemos desconectá-los da ligação com a classe. Portanto, nos estudos sobre o Antropoceno, o componente histórico é fundamental: não podemos perder a crítica ao capitalismo, já que toda a crise ambiental e humana que vivemos é consequência direta desse sistema e de sua expansão ao longo dos séculos.

Referências Bibliográficas

COSTA, Alyne de C. Da verdade inconveniente à suficiente: cosmopolíticas do antropoceno. Revista Eletrônica de Filosofia, v. 18, n. 1, 2021. p. 37-49

LATOUR, Bruno et al. Para distinguir amigos e inimigos no tempo do Antropoceno. Revista de Antropologia, v. 57, n. 1, p. 11-31, 2014.

MOORE, Jason. Anthropocene, capitalocene & the flight from World History: dialectical universalism & the geographies of class and power in the capitalist world-ecology, 1492-2022. Nordia Geographical Publications, v. 51, n. 2, 2022. p. 123-146.

TSING, Anna L. O Antropoceno mais que humano. Ilha, v. 23, n. 1, 2021. p. 176-191.

WAGNER. Roy. The invention of culture. New Jersey: Prentice Hall, 1975.