Imagem: Ciência Hoje

A minha premissa é a de que não é possível um verdadeiro engajamento na luta antirracista sem discutir a branquitude e os seus privilégios materiais e simbólicos. É mister lembrarmos que, como pessoas brancas, nosso próprio corpo dimensiona diversas violências raciais. Somente com o reconhecimento da branquitude enquanto raça e enquanto um grupo que adquire vantagens e privilégios imensuráveis em uma sociedade extremamente estratificada e racialmente desigual, é que poderemos afirmar, veementemente, que buscamos a mitigação das desigualdades raciais no Brasil.

Derrubando mitos e colocando a branquitude como raça

No nosso país, aprendemos desde cedo, na escola, que vivemos em uma “democracia racial”, e que o racismo só existiria em países que tiveram leis explícitas de segregação racial, como os Estados Unidos ou a África do Sul. Eu acredito que o racismo brasileiro consegue ser ainda pior, pois é dissimulado, forjado com essa pretensa igualdade racial e amparado em outro mito: o da meritocracia.

Contudo, esses dois mitos – o da democracia racial e o da meritocracia – só existem e permanecem sustentados até os dias de hoje, pois as pessoas brancas não conseguem se enxergar como racializadas. Os sujeitos brancos são vistos como universais, neutros; eles se veem uns aos outros como normalizados, padronizados e individualizados.

Bento (2002) cunhou o termo “pacto narcísico da branquitude”, em que pessoas brancas agem de forma símil entre si para preservarem seus privilégios raciais. As pessoas brancas são tomadas pelo “medo” quando pessoas negras se ascendem socialmente e passam a ocupar os lugares sociais e os espaços de poder até então “exclusivos” dos brancos. Da mesma maneira, brancos/as tendem a somente valorizar, reconhecer, legitimar e exaltar trabalhos feitos por outros/as brancos/as; existe uma valorização exacerbada da estética branca, esta tida como padrão de beleza universal e não facilmente atingido, principalmente em um país miscigenado e de maioria negra como o nosso.

É interessante notar que, ao fazer esse pacto, talvez seja este o único momento em que brancos/as se reconhecem como racializados, já que, deliberadamente, visam a excluir as pessoas negras dos espaços de poder, ao mesmo tempo em que as silenciam e as marginalizam. Não obstante, brancos/as se isentam de qualquer responsabilidade na propagação do racismo, e ainda afirmam que isso é um problema da população exclusivo da população negra.

Todos/as nós precisamos superar esse racismo internalizado, ensinado por nós desde pequenas, em casa, na escola, na vida em sociedade… Esse racismo é ratificado com a segregação e marginalização dos negros, em que eles “até podem existir, mas no seu devido lugar” – nas profissões subalternaizadas, na mendicância ou servindo os brancos.

Para Ruth Frankenberg (2004 apud Schucman, 2012, p. 30), existem oito elementos que definem, estruturam e conceitualizam a branquitude:

1. A branquitude é um lugar de vantagem estrutural nas sociedades estruturadas na dominação racial.

2. A branquitude é um “ponto de vista”, um lugar a partir do qual nos vemos e vemos os outros e as ordens nacionais e globais.

3. A branquitude é um locus de elaboração de uma gama de práticas e identidades culturais, muitas vezes não marcadas e não denominadas, ou denominadas como nacionais ou “normativas” em vez de especificamente raciais.

4. A branquitude é comumente redenominada ou deslocada dentro das denominações étnicas ou de classe.

5. Muitas vezes a inclusão na categoria branco é uma questão controvertida e, em diferentes épocas e lugares, alguns tipos de branquitude são marcadores de fronteira da própria categoria.

6. Como lugar de privilégio, a branquitude não é absoluta, mas atravessada por uma gama de outros eixos de privilégio ou subordinação relativos; estes não apagam nem tornam irrelevante o privilégio racial, mas o modulam ou modificam.

7. A branquitude é produto da história e é uma categoria relacional. Como outras localizações raciais, não tem significado intrínseco, mas apenas significados socialmente construídos. Nessas condições, os significados da branquitude têm camadas complexas e variam localmente e entre os locais; além disso, seus significados podem parecer simultaneamente maleáveis e inflexíveis.

8. O caráter relacional e socialmente construído da branquitude não significa, convém enfatizar, que esse e outros lugares raciais sejam irreais em seus efeitos materiais e discursivos.

As pessoas brancas são sempre vistas como indivíduos, nunca como um grupo, diferentemente das pessoas de outras raças e de outras etnias, que são vistas, pelo olhar dominante, de forma racializada e grupal, como diferentes, “desviantes”, “inferiores”, “à margem” (Schucman, 2012, p. 17), e o que considero o pior: como exóticos. Somente a branquitude toma para si a ideia de ser não raça, de ser neutra e universal. Ao fazer isso, a pessoa branca tenta ignorar as diversas vantagens advindas da branquitude, o que prejudica enormemente a luta contra o racismo.

Racismo e branquitude: mais próximos, impossível

O racismo é estrutural: ele conforma a estrutura da nossa sociedade, a maneira como ela foi estabelecida; ele está nas relações hierárquicas de poder, bem como no acesso a esse poder; ele se escancara no acesso material ao capital, ao lucro, ao lazer; na diferenciação laboral e salarial; no racismo ambiental e alimentar (insegurança alimentar); e  na valorização exacerbada da estética branca.

O racismo é institucional: está ligada ao poder – quem acessa os maiores cargos políticos e públicos; o acesso à terra, à moradia salubre. Está na falta de políticas públicas e de saúde para a população negra; está na falta de representação nas classes políticas; está na violência policial, no assassinato e no genocídio dos jovens negros, bem como no seu encarceramento. As oportunidades são completamente desiguais entre as raças – existe um enorme privilégio pela população branca que é apagado pela não racialização desse segmento, e canalizado em mitos como o da meritocracia.

Se o racismo é o pilar da nossa sociedade, está em sua estrutura, está nas instituições, está nas recreações (lembremos das piadas racistas trajadas de humor), está no nosso vocabulário, e nós fazemos parte dessa sociedade, por mais que afirmemos não sermos racistas, nós temos sim a responsabilidade de combatê-lo. É preciso afastar essa ideia de que o racismo é um mero desvio moral individual – ele é estrutural, coletivo.

Ser branco é ocupar um lugar de privilégio extremo na sociedade brasileira. Ter essa cor de pele e aquele cabelo liso abrem caminhos infinitos, mas essa estrada sempre esteve assentada nos corpos e nos sangues dos negros e dos indígenas. Aliás, sem eles, a acumulação capitalista pelos brancos não seria possível – nem mesmo a entrada de nós, mulheres brancas, nas rodas de produção e acumulação capitalistas.

A importância do autorreconhecimento como mulher branca

Foi um longo processo para eu me reconhecer como mulher branca, pois eu me baseava muito pela minha ascendência, que não tem nada de caucasiana, mas é uma grande mix – árabe, indígena e africana. Meus estudos são permeados pelo feminismo negro e decolonial, e me considerava, há muitos anos, antirracista, em uma família de negros em que eles mesmos reproduziam o racismo, mas relutava em me reconhecer como mulher branca – outro grande privilégio que temos!

Tive que escutar inúmeras vezes, por todas as pessoas ao meu redor, que eu era branca, pois não conseguia admitir – sempre me auto identificava como parda. Passei a refletir sobre meus lugares de privilégio, porque ser branca é isso, é ter esse privilégio imensurável na sociedade estratificada, e levei em consideração o meu próprio embranquecimento ao longo da vida – passei a alisar os cabelos e, para “proteger minha pele”, comecei a passar protetor solar diariamente. Acabei me afastando dos elementos que ainda podiam remeter à minha identidade parda, porque os meus traços não são suficientes para me deslocar – muito menos a minha classe.

Porém é um grande problema essa não identificação como mulher branca, pois parece que queremos nos esquivar de uma grande responsabilidade na perpetuação do racismo. A realidade é que o racismo e a branquitude fazem parte das nossas identidades. Sem discutir branquitude e sem colocá-la como ela deve ser: raça, é impossível combater o racismo.

O feminismo hegemônico (branco), em que há uma pretensa neutralidade e universalização da mulher branca, somente serve para nos consolar quanto ao lugar de submissão em que estamos em relação aos homens brancos. Sem a Interseccionalidade, esse feminismo é acomodado, não combativo, privilegiado, e ainda cooptado pelos interesses capitalistas e masculinistas.

Assim, a solução não seria somente nos esquivarmos das implicações interseccionais entre raça e gênero, mas começaria por um reconhecimento dos privilégios e, posteriormente, para uma ampliação da luta contra a desigualdade de gênero, racial, de classe, sexual. Como mulheres brancas, fazer isso não é apenas benevolência, não é para ficarmos “bem na fita” – é nosso dever, pois fazemos parte da estrutura da desigualdade racial e adquirimos privilégios sobre isso, por mais que afirmemos, categoricamente que, individualmente, não somos racistas.

Atitudes que nós, pessoas brancas, podemos ter, se quisermos ser, verdadeiramente, antirracistas:

  • Inicialmente, devemos reconhecer os nossos privilégios e abrir mão deles – só assim para haver inclusão racial e social;

Um bom exemplo é que nós, pessoas brancas, podemos passear em lojas e supermercados tranquilamente, pois nunca seremos perseguidas por seguranças. Podemos entrar com mochilas enormes em supermercados, que não seremos revistadas; podemos sair com qualquer roupa, de chinelinho, bermuda, que não seremos encaradas por policiais. Ser branco é ter um passaporte especial, que nos dá acesso a quase tudo…

Não temos nossa inteligência questionada, não somos rejeitadas em entrevistas de emprego pela textura dos nossos cabelos. Temos maior acesso aos direitos reprodutivos, somos mais contempladas por políticas de prevenção à violência de gênero, ainda que soframos com a desigualdade. Mesmo em condições de extrema pobreza, podemos refletir – um mendigo branco não tem “cara de mendigo”; uma mulher branca não tem cara de “periférica”; um homem branco tem a cara da superioridade e do poder em nossa sociedade. E a mulher branca, na questão racial, tem vantagens imensas – seus rendimentos são maiores que os dos homens negros e, obviamente, que os das mulheres negras.

  • Devemos fazer o teste do pescoço e precisamos nos revoltar com isso – urge derrubar o mito da democracia racial!
  • Devemos parar de normalizar as diferenciações raciais e questionar – por que a CEO é branca e a empregada doméstica é negra? Por que o juiz é branco e o motorista é negro? Por que a professora universitária é branca e a moça da cantina e a da limpeza são negras? Explicar o racismo para pessoas brancas é um processo que pode ser longo, é preciso ensinar o beabá mesmo…
  • Devemos estar à frente ou apoiar as políticas afirmativas.
  • Devemos educar as crianças para uma sociedade não racista – quando eu era pequena, via colegas negras sofrerem com o racismo todos os dias; sabia que era errado, mas não conseguia me posicionar. Apenas não reproduzia as ofensas, como se isso bastasse. Mas não basta – é preciso combater o racismo, ser antirracista – pelas lentes da moralidade, é o racista o errado. Contudo, é importante lembrar que o racista não age sozinho, ele é amparado pelos ideais da hegemonia branca, pelas representações raciais nas instituições, na mídia, na televisão. Por isso, reforço que é essencial reconhecermos todos os privilégios materiais e simbólicos advindos da branquitude diariamente.

Algumas obras recomendadas:

Olhos Azuis | Documentário | Jane Elliott

Racismo Estrutural – Silvio Almeida

Pequeno Manual Antirracista – Djamila Ribeiro

Branquitude: Estudos sobre a Identidade Branca no Brasil – Tânia M. P. Müller e Lourenço Cardoso

Pele negra, máscaras brancas – Frantz Fanon

Teste do pescoço: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/07/teste-do-pescoco-revela-racismo-no-brasil.html

Frases e expressões racistas que precisamos parar de falar:

Página “Minha branquitude”: https://www.instagram.com/minhabranquitude/

Jornalzine: https://branquitudes.org/

Nebb Branquitudes: https://www.instagram.com/nebbranquitudes/

Referências

BENTO, Maria Aparecida Silva. Pactos Narcísicos no Racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade. 2002.

SANTOS, Rodrigo Severo dos. A branquitude de white face and blonde hair. Sankofa. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana Ano XIII, NºXXIII, abril/2020.

SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. Tese (Doutorado em Psicologia) – Universidade São Paulo, São Paulo, 2012.

Geledés:

Caetano, Daniela. Entre o pacto narcísico da branquitude e eu não sou seu (sua) negro (negra): considerações acerca do silenciamento e da não legitimidade de pessoas negras como sujeitos capazes de opinar. Resgatado de:https://www.geledes.org.br/entre-o-pacto-narcisico-da-branquitude-e-eu-nao-sou-seu-sua-negro-negra-consideracoes-acerca-do-silenciamento-e-da-nao-legitimidade-de-pessoas-negras-como-sujeitos-capazes-de-opinar/

Carreira, Denise. O lugar dos sujeitos brancos na luta antirracista. Resgatado de: https://www.geledes.org.br/o-lugar-dos-sujeitos-brancos-na-luta-antirracista/

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