Imagem: Outras Palavras (créditos)

Introdução: a epistemologia feminista como questionadora da própria construção do conhecimento nas Ciências Sociais

As teorias feministas não fazem apenas uma crítica às teorias dominantes, mas realizam um questionamento teórico e filosófico mais profundo: são questionamentos que versam sobre a própria construção do conhecimento nas Ciências Sociais. Essas teorias adotaram uma perspectiva social e politicamente engajada, de maneira interdisciplinar e sem renunciar a diálogos com saberes não acadêmicos.

Desde as teorias pós-estruturalistas, as quais rejeitam oposições binárias e verdades absolutas, e cujos intelectuais representantes estão entre Foucault, Barthes e Derrida; e a virada linguística, a qual reivindica a não neutralidade da linguagem, e cujo maior representante é Ludwig Wittgenstein, passou a ser concedida uma maior centralidade aos atores para a construção das teorias, bem como uma maior ênfase na criatividade, na imaginação e na estetização do político. É nesse encontro de inovações metodológicas e na emergência de uma nova comunidade epistêmica que os estudos feministas afloraram com mais força e maior repercussão.

Lorraine Code e a importância do conhecimento construído “nas margens”

Na epistemologia feminista, há um tensionamento em relação à divisão tradicional entre ética, ciência e política. Como nos mostra Code (2014), a epistemologia era vista como aquilo que buscava um conhecimento universal e uma resposta única para tudo. Contudo, esse conhecimento sempre fora masculino, branco e privilegiado. A ciência nunca fora “neutra” ou apolítica. Portanto, esses “pré-requisitos” para que se alcançasse a ética na ciência podem ser contestados.

Assim, a autora nos ensina que devemos pensar o/a sujeito/a do conhecimento em seu contexto e na sua particularidade. Ao contrário dos essencialismos estabelecidos pela modernidade, essas teorias buscam a singularidade do método, a multiplicidade dos atores e a natureza livre da produção do conhecimento. O conhecimento construído nas “margens” por grupos subalternos faz frente às normas hegemônicas, e nos mostra que outros caminhos podem e devem ser seguidos na construção da ciência.

O empiricismo é capaz de visibilizar os invisibilizados, a partir de novas metodologias, já que as então utilizadas eram limitadas. Como exemplo, temos a teoria sobre o lugar onde os sujeitos estão posicionados (Standpoint theory), a qual se utiliza das práticas e das experiências das mulheres a partir de suas próprias perspectivas. Essas metodologias, no entanto, mantêm o compromisso com a objetividade, tão primordial à ciência. Nelas, são consideradas as vivências objetiva e subjetivamente localizadas, vividas de formas diferentes por cada sujeito. Assim, temos uma visão mais ampla do conhecimento, ao contrário da visão pretensamente universal, que é vazia e, muitas vezes, impostora.

Ao levar a sério as experiências cognitivas das mulheres e ao evitar o individualismo e o universalismo das teorias dominantes, a epistemologia feminista consegue fazer a junção entre teoria e prática, a partir de conhecimentos localizados e coletivos. Code nos mostra que há um certo privilégio em não estar submetida à epistemologia universal – em estar na margem -, já que podemos enxergar o mundo de outras formas. Conseguimos não normalizar, mas apreender a localização do conhecimento dito universal. Ao citar Patricia Hill Collins (2012), a autora nos explica que a “consciência dupla” das mulheres que são “de fora”, mas que se inserem dentro do sistema, permite que elas vejam e entendam coisas invisíveis àqueles que não são marginalizados.

Donna Haraway e a objetividade que só é alcançada a partir dos saberes localizados

Nesse ínterim, Haraway (1995) nos afirma que não é possível seguir uma objetividade pura na ciência. As doutrinas de objetividade ameaçam os sentimentos de subjetividade e de ação histórica coletiva, tão importantes na construção do conhecimento. A autora faz um questionamento sobre a visão universal da ciência, a qual oculta a posição marcada do homem, branco, cis, ocidental, europeu-norte-americano, cristão, e nos mostra que a ciência não deve ser vista como universal, mas como uma prática localizada que, por meio de agenciamentos semióticos, utiliza-se de vários instrumentos para se universalizar. Haraway também denuncia que a linguagem desse homem branco europeu, falsamente um sujeito “neutro”, sempre fora aquela utilizada para as traduções e as conversões na produção da ciência.

Destarte, o que a epistemologia feminista buscou foi a desconstrução da própria ciência. Esta não precisaria mais seguir o caminho construcionista, que produz verdades provisórias e pretensamente universais e totalizantes. Deve-se ir além da denúncia entre a “ciência boa” e a “ciência má” e, com isso, desmascarar a própria ideia de objetividade. A epistemologia feminista seria, então, uma ciência sucessora, reconstruída em um novo projeto, no qual uma outra ética pode ser produzida.

Para Haraway, o lugar de distanciamento na ciência é um lugar onde se exerce o poder, que é sempre masculino. A objetividade feminista está, ao contrário, na diversidade, na pluralidade, nos saberes localizados. As ciências localizadas estão interconectadas. São posicionamentos políticos, no quais a autonomia é construída a partir dos diversos vínculos estabelecidos, e não apenas de uma “autoidentidade”.

Assim, por meio do resgate da relação entre corpo e mente, retomamos uma perspectiva parcial, a qual permite, por sua vez, obter uma visão objetiva: essa é uma forma de recompor a conexão do sujeito com o conhecimento. Nesse sentido, sujeito e objeto se tornam ativos, em uma verdadeira relação de coprodução. E é por meio da escrita feminista do corpo que resgatamos esses caminhos. Passamos a saber quem somos, para o que serve todo o conhecimento: sabemos o nosso lugar no mundo. Nossos olhos, nossa visão, constroem modos específicos de ver o mundo, constroem modos de vida, e podemos nos tornar responsáveis pelo que aprendemos a ver.  A objetividade deve, então, vincular-se à corporificação específica e particular, e não à transcendência, à universalização. Haraway nos mostra que somente a perspectiva parcial promete uma visão objetiva, já que ela é localizada, demarcada, e não pretensiosamente objetiva, universal.

A autora também nos alerta que devemos nos libertar tanto do universalismo, quanto do relativismo, sem renunciar à objetividade. Os relativismos também se coadunam com totalidades e visões únicas: é como se o sujeito estivesse em lugar nenhum e em todos os lugares ao mesmo tempo. O relativismo pode ser visto como o “gêmeo invertido” da totalização. Ambos negam a importância do posicionamento, da corporificação, da perspectiva parcial. Portanto, ambos impedem que enxerguemos objetivamente bem.

A heterogeneidade é, então, um privilégio das epistemologias feministas. É importante demarcarmos que Haraway se posiciona contra essencialismos, os quais estariam presentes nas categorias generalizantes e estruturantes, e que compõem o cerne das teorias universais. Portanto, para a autora, a identidade e a autoidentidade não produzem ciência, mas sim o posicionamento crítico. Este é a chave para que alcancemos o conhecimento organizado e a tão almejada objetividade.

Não obstante, a autora ressalta que as explicações racionais são sempre disputas sobre formas de ver o mundo e qual delas irá prevalecer. Assim, a parcialidade e o conhecimento localizado e posicionado, de sujeitos múltiplos, de diversas interpretações, de corporificações, de visões críticas, é que devem constituir o conhecimento racional. O conhecimento universalizante é, na verdade, um impostor: é vazio e vem de lugar nenhum.

Para a epistemologia feminista, a ciência é feita ao estabelecer a objetividade como uma racionalidade posicionada. O posicionamento reconhece sua vulnerabilidade e resiste às políticas de fechamento e aos simplismos.  A visão desde um corpo, que é complexo, contraditório, simultaneamente estruturante e estruturado, opõem-se à “visão de cima”, que vem de lugar nenhum e é sempre simplista. É essa visão desde o corpo, que diz respeito à vida das pessoas, que é aquela capaz de produzir o conhecimento racional. Haraway demarca, no entanto, que, nas epistemologias feministas de alocação, a parcialidade não é buscada por ter um fim em si mesma, mas sim porque ela permite, por meio do conhecimento situado, estabelecer conexões e aberturas inusitadas. É a criatividade de quem não está no comando do mundo. Assim, estar em algum lugar é o único modo de se encontrar uma visão mais ampla do conhecimento.

Podemos, então, dizer que as epistemologias feministas são, de fato, construídas a partir de saberes localizados, mas os quais não se antagonizam à objetividade sempre requerida na construção da ciência. Ao contrário, é a partir desses saberes localizados que podemos alcançar a objetividade. As teorias universais sempre ocultaram o olhar masculinista que as produziu, bem como o poder da raça (branca), do gênero (masculino) e da classe dominantes em sua construção. O sujeito universal nunca fora neutro – ao contrário, ele sempre fora muito bem localizado.

Conclusões: o perigo do universalismo e do essencialismo nas teorias feministas hegemônicas e a diversidade como a maior saída

Porém, é importante nos lembrarmos de que continuou a existir uma superutilização do universalismo na produção das teorias feministas hegemônicas. Portanto, estas deixaram de servir para explicar a realidade e as opressões vividas por mulheres atravessadas por marcadores como raça, etnia, geração e, é claro, pelos territórios geográficos em que estão localizadas, os quais passaram por séculos de colonização e cuja produção acadêmica continuou a ser colonizada epistemologicamente.

Nesse contexto, por mais que a teoria feminista hegemônica tenha criticado o sujeito universal masculino na produção da ciência, suas autoras não se deram conta de que acabaram por produzir um sujeito feminista também universal e totalizador, e se utilizaram dos mesmos privilégios epistêmicos, por estarem em países centrais, por serem brancas, de classes mais altas e, muitas vezes, heterossexuais.

Portanto, Espinosa-Miñoso (2014) nos alerta que a categoria gênero não deve cair na mesma armadilha da unidade, da universalização e da totalização, como ocorreu no feminismo hegemônico. As opressões sofridas pelas mulheres são distintas e se devem aos atravessamentos de raça, classe, etnia, geração, território, nacionalidade, religião. Uma nova epistemologia feminista deve, portanto, atentar-se a essa pluralidade de experiências e de vivências, as quais são, antes de tudo, localizadas.

Por fim, é mister ressaltar que a epistemologia feminista não renunciou ao poder da ciência, tampouco se confunde com um autoidentitarismo. Em oposição ao feminismo hegemônico, as feministas subalternas, entre as quais estão as decoloniais, ressignificaram as subalternidades e passaram a utilizá-las de forma política, para marcar identidades, mas não necessariamente de forma essencialista, pois a diversidade é sempre ressaltada (Ballestrin, 2020). Assim, a partir dos ensinamentos, das vivências e das lutas das mulheres autóctones, negras e tradicionais, os movimentos identitários, no âmbito das teorias feministas decoloniais e de suas vertentes, ganharam outra dimensão. Ao invés de estes caírem no essencialismo, na unidade, no universalismo, eles adquiriram um forte viés político, em que a diversidade é o seu maior pilar.

Referências

BALLESTRIN, Luciana. Feminismo De(s)colonial como Feminismo Subalterno Latino-Americano. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n. 3, e75304, 2020.

CODE, Lorraine. Feminist Epistemology and the Politics of Knowledge: Questions of Marginality. In: EVANS, M. et al. The SAGE Handbook of Feminist Theory. Los Angeles/London/New Delhi / Singapore/Washington DC: SAGE, 2014. p. 9-26.

ESPINOSA-MIÑOSO, Yuderkys. Una crítica descolonial a la epistemología feminista crítica. El Cotidiano, n. 184, marzo-abril, pp. 7-12, 2014.

HARAWAY, Donna. Saberes localizados:  a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5, 1995, p. 7-41.

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