Foto: reprodução Twitter

Podem parecer ridículas e toscas, para muitas pessoas, fotos de homens portando armas ou metralhadoras nas redes sociais afora.

Sem comentários…

Entretanto, para tantas outras, elas transmitem sensações de poder, bravura, força, virilidade. Há, em nossa sociedade, um verdadeiro fetiche por armas de fogo, que, de uns tempos para cá, virou até ideologia de campanha, e que, para o nosso infortúnio, possibilitou que pessoas estúpidas fossem eleitas para os mais altos cargos políticos.

É mais difícil ainda internalizar a ideia de que muitos que fazem “poses de arminha” sonham com o dia em que terão uma arma de fogo nas mãos – e não é mais necessário passar em algum concurso para um cargo público que detenha a posse e o porte de armas; agora, basta ter algum dinheiro sobrando para comprar os equipamentos e fazer algumas aulinhas em clubes de tiro.

Sociedade Fálica

As armas de fogo, assim como as espadas e os punhais, são símbolos fálicos, os quais representam o órgão sexual masculino na forma ereta. No campo da simbologia, que perpassa conceitos de masculina tóxica, eles transmitem a ideia de virilidade, agressividade e poder.

De acordo com Santos (2012), a masculinidade “tóxica”, “frágil” ou “hegemônica”

[…] é uma construção cultural hegemónica que, apesar de não equivaler às atitudes da maioria dos homens, sustém e legitima o sistema patriarcal na vida social e política. Trata‑se de uma versão particular e idealizada de masculinidade, cujos ingredientes principais, na atual cultura ocidental, são a coragem, a agressividade, a heterossexualidade, a homofobia, a racionalidade e a subordinação da mulheres. Para além disso, é em relação a esta que imagens de feminilidade e outras masculinidades, tidas como inferiores (homossexualidade, transexualidade), são marginalizadas e subordinadas (SANTOS, 2012, p. 138).

Nossa sociedade foi construída nas bases do falocentrismo e da masculinidade hegemônica. Se notarmos bem, a arquitetura ocidental é bastante fálica: basta observamos quantos obeliscos existem nas grandes cidades. Até a Torre Eiffel é considerada um símbolo fálico. Também não ficariam para trás a Torre de Pisa ou o Big Ben. Da mesma forma, não é incomum encontrarmos desenhos, estátuas e esculturas masculinas cujos pênis estão eretos.

Mas nem sempre foi assim. Nas culturas ancestrais, a fertilidade sempre esteve mais ligada ao sexo feminino. De uma forma geral, as mulheres eram centrais nessas sociedades, entre tantas outras coisas, porque possuíam o dom de gerar uma vida.

Contudo, principalmente com o advento do monoteísmo, houve uma ruptura com as divindades femininas e o masculino se tornou o único a ser venerado. A história foi demasiadamente invertida, e o dom da vida passou a ser uma posse dos homens, já que, “sem os espermatozoides, não poderia haver concepção”. Isso foi tão levado a sério que há um famoso livro Bíblico em que um ser humano nasceu de uma costela, não de um útero.

A violência, a dominação e as assimetrias de poder sempre foram inerentes à sociedade patriarcal. E as armas de fogo representam muito bem a agressividade e o constante estado de alerta e de medo que a permeiam.

Armas de fogos e o continuum da violência

Apesar de terem surgido há muitos séculos, as armas de fogo se tornaram mais modernas e, com a produção em massa, mais acessíveis à população civil. Por carregarem consigo histórias de guerras, confrontos, domínios e mortes, os países mais permissivos tendem a possuir, proporcionalmente, crimes mais violentos e, consequentemente, mais mortes por armas de fogo (Conti, 2017). É importante destacarmos que, com mais acesso a armas, aumenta o número de mortes e ferimentos acidentais em crianças e adolescentes, bem como o número de mortes por suicídio.

No Brasil, até 2019, nossa legislação era mais restritiva. A despeito disso, já tínhamos um alta taxa de crimes violentos por armas de fogo e um enorme número de armas em circulação. De acordo com a Atlas da Violência de 2020 (IPEA, 2020), em 2018 houve 47.510 mortes por armas de fogo no Brasil. Nesse mesmo ano, foram 4.519 mulheres assassinadas (uma mulher a cada duas horas e 68% de mulheres negras), sendo que, em 51,6% dos crimes, foram usadas armas de fogo.

No campo individual, acredito que portar uma arma de fogo (e fazer questão de mostrá-la em redes sociais) é uma forma de reafirmação da masculinidade tóxica, principalmente quando o homem não possui atributos de “machão”, como, por exemplo, ser jovem, ser bonito, ser “garanhão”, ser inteligente e financeiramente bem sucedido, ou mesmo ter o pênis grande.  A arma de fogo vem, então, substituir as mais diversas frustrações masculinas e tornar alguns anseios realidadea arma é um pinto ejaculando que não decepciona.

E a segurança?

Os discursos demagogos sobre o acesso às armas de fogo ganharam muito destaque, e encontraram terreno fértil em um país em que a segurança pública é um dos maiores problemas existentes. Problemas esses que vão desde a inadmissível estratificação social até a composição ilógica das polícias: separadas, nada articuladas, frágeis, corporativistas, extremamente hierárquicas, com absurdos resquícios ditatoriais em sua organização e em seu modus operandi.

Só caindo um meteoro mesmo, para começarmos do zero e, então, resolvermos o grande problema da polícia brasileira…

Assim, ao invés de realmente se discutir como melhorar e aprimorar a segurança pública (que, a meu ver, deveria começar por uma reorganização da polícia brasileira), apresenta-se como solução a sua terceirização, princípio este basilar da formação das milícias armadas.

A partir de agora, com o acesso dos “cidadãos de bem” às armas, cada um será responsável por sua própria segurança, não obstante tenha a possibilidade de ser protegido, também, por grupos especializados, que nada mais são do que as famigeradas milícias.

Acesso a armas x formação de milícias

Deter a arma, fazer parte de uma milícia ou somente admirá-la e legitimar a sua existência é, também, uma forma de afrontar o Estado de Direito, suas leis, suas regras. Quem detém uma arma pode, em alguns segundos, de forma certeira, acabar com a vida de outrem. E ter poder sobre a vida é, de fato, estar acima de regulamentos que preconizam a nossa dinâmica social; é estar, literalmente, acima do Estado.

O discurso de “armar a população do bem contra os bandidos” é de fácil assimilação, porém completamente inverossímil. É mister lembrarmos que as milícias surgiram com esse papo de “defender a população de bem contra a bandidagem”, mas a mensagem, ainda que subliminar, era a de competir com o poder paralelo, então em vigor, por controle territorial, populacional e pelo tráfico de drogas.

Hoje, sabemos que as milícias armadas são verdadeiros grupos saqueadores, que extorquem as pessoas que vivem nos territórios por ela controlados, as quais são, literalmente, potenciais vítimas de assassinatos – basta fazer qualquer coisa que desagrade os milicianos ou subverter às suas ordens.   

Acesso a armas x feminicídio

Em um relacionamento abusivo, a presença da arma de fogo por parte do agressor tem uma extensa simbologia. A mulher viverá sob uma constante ameaça e sua vida só não será ceifada enquanto ela obedecer às regras e aos mandamentos criados pelo seu algoz. Em casos assim, a arma de fogo assegura total controle e dominação ao agressor – talvez, muito mais que a certeza da dependência emocional ou física por parte da mulher. De acordo com Meneghel e Portela (2017),

[…] Os feminicídios são mortes femininas que se dão sob a ordem patriarcal, uma forma de violência sexista que não se refere a fatos isolados, atribuídos a patologias ou ciúmes, mas expressa ódio misógino, desprezo às mulheres e constituem mortes evitáveis e, em grande maioria, anunciadas, já que grande parte representa o final de situações crescentes de violências (MENEGHEL e PORTELA, 2017, p. 3080)

Deter novamente o “controle das coisas” é ponto chave para entendermos a masculinidade tóxica. Com a ascensão social das minorias; com as mulheres adentrando o mercado de trabalho antes dominado por homens; e com homens e mulheres negras ingressando nas universidades e possuindo altos desempenhos acadêmicos, a vida ficou mais amarga para aqueles que detinham privilégios e garantias concretas na então configuração social.

Ter o falo, ser branco e heterossexual e, por sorte, pertencer às classes mais altas, não é mais suficiente para se ter acesso a todas as benesses da sociedade capitalista. Quem já tinha tudo, simplesmente por ser macho e branco, terá que realmente provar que é “merecedor” – agora, existe a concorrência, com capacidades e níveis de inteligência bem superiores.  

O aumento da violência letal entre homens pode ocasionar crescimento dos homicídios entre mulheres, uma vez que sociedades violentas para com os homens possuem configurações socioculturais que produzem também altas taxas de violência contra mulheres, como o machismo, o culto à virilidade e o padrão de resolução de conflitos violento e privado (idem).

Estudos científicos (Meneghel e Portela, 2017; Santos, 2012) mostram que os casos de feminicídios são aumentados quando do afrouxamento do acesso às armas de fogo. Por outro lado, mais mulheres deterem a posse armas de fogo em nada muda as suas condições de vulnerabilidade e a sua vitimização. De acordo com Santos (2012),

Pese embora o facto de as armas de fogo constituírem, em alguns casos, uma forma de apoio às mulheres (Stroud, 2012), sem uma alteração significativa dos discursos sexuados de violência e vitimação. A sua utilização [das armas de fogo] pode transformar‑se num (novo) foco de violência contra essas mesmas mulheres, sobretudo se tivermos em consideração o padrão de vitimação provável (violência cometida por conhecidos) (Santos, 2012, p. 140).

“Obviamente, não é necessário ter armas para praticar violência doméstica. Mas a presença das armas é um dos fatores que impede as vítimas de reagir, de denunciar e até de escapar de seus agressores” (Soares, 2005 apud Santos, 2012, p. 156).

Finalmente quis escrever sobre esse tema ao ler a notícia sobre o feminicídio de uma soldado, que também era “influencer” e posava, em suas fotos, sempre com armas. Infelizmente, ter a posse de arma não foi suficiente para que ela se livrasse do seu algoz. E nunca seria, nem para uma mulher experiente como ela, muito menos para outra que fizesse uma ou outra aula de tiro, principalmente em situações de ataques e pânicos. O cerne da violência doméstica, e do feminicídio, está muito mais no campo sociológico, psicológico, do simbolismo, do que no campo pragmático.

A meu ver, uma mulher, ao portar a arma como um homem, ao vestir a fantasia da “garota fálica”, segura, em suas mãos, o instrumento de sua própria morte.

Enquanto vivermos em uma sociedade permeada por assimetrias de gênero, e enquanto a masculinidade tóxica for algo a ser celebrado, até “resgatado”, o feminicídio será o trágico desfecho de algo muito maior, e que demandaria uma verdadeira mudança na estrutura social. “Armar a população nisso daí” vai totalmente de encontro ao que realmente precisamos, a fim de que a criminalidade seja mitigada no Brasil.

Referências:

BRASIL. Atlas da Violência. IPEA, 2020.

CONTI, Thomas. Dossiê Armas, Crimes e Violência: o que nos dizem 61 pesquisas recentes. Disponível em: http://thomasvconti.com.br/2017/dossie-armas-violencia-e-crimes-o-que-nos-dizem-61-pesquisas-recentes/. Acesso: 17/10/2020.

MENEGHEL, Stela Nazareth; PORTELLA, Ana Paula. Feminicídios: conceitos, tipos e cenários. Ciência & Saúde Coletiva, 22(9):3077-3086, 2017.

SANTOS, Rita. “Cidadãos de bem” com armas: Representações sexuadas de violência armada, (in)segurança e legítima defesa no Brasil. Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 96 | 2012.

Sites: acesso em 08.10.2020

https://elpais.com/elpais/2012/10/29/viajero_astuto/1351486800_135148.html

https://rodrigocallo.wixsite.com/prrodrigoc/single-post/2012/03/11/O-que-significa-isso-Obeliscos

https://phiguchi.wordpress.com/2018/04/01/o-desejo-por-armas-o-sentimento-de-impotencia-e-o-medo-da-castracao-uma-breve-reflexao-sobre-uma-tematica-atual/#:~:text=O%20desejo%20por%20uma%20arma,na%20civiliza%C3%A7%C3%A3o%20e%20outros%20textos

https://gauchazh.clicrbs.com.br/seguranca/noticia/2019/08/e-enganoso-artigo-que-associa-mais-armas-a-menos-violencia-cjzct2gwe02w401qm33mmjr0q.html

https://luizsperry.blogosfera.uol.com.br/2017/10/12/por-que-tantas-pessoas-se-encantam-com-a-ideia-de-ter-uma-arma-de-fogo/

https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/17/opinion/1547763738_936846.html

https://papodehomem.com.br/armas-de-fogo-e-a-saude-dos-homens-o-que-uma-coisa-tem-a-ver-com-a-outra/