Foto: O Dia (créditos)
Morar no Rio de Janeiro é viver a Sociologia diariamente. É, ao mesmo tempo, estarrecedor estar diante de verdades ainda pouco conhecidas por quem não as vê de perto – ou para quem insiste em não as enxergar.
Quando Marielle foi assassinada, nós aqui não tivemos muitas dúvidas: sabíamos que ela havia perdido a vida pelas mãos de milicianos – o uso de uma arma exclusiva de forças oficiais era só uma de tantas evidências. Porém, nem todo mundo sabe, verdadeiramente, o que são as milícias e quem faz parte delas. No RJ, esses grupos possuem uma forte atuação, principalmente na Zona Oeste da cidade e, também, na Baixada Fluminense (que compreende cidades como Nilópolis, Belford Roxo, Nova Iguaçu, Duque de Caxias…).
Sua atuação começou ainda na década de 1970, mas só ficou mais notória a partir dos anos 1990-2000. Segundo Ignacio Cano, em entrevista à BBC, no início, as milícias eram conhecidas como “polícias mineiras”, e controlavam mais o acesso a terrenos e a imóveis. Posteriormente, suas atividades foram expandindo e a extorsão se tornou a principal entre elas, não obstante a incrustação direta na política, principalmente por meio de mandatos legislativos.
Segundo Thaís Duarte, para o Nexo Jornal, “As características da milícia podem ser resumidas em cinco traços centrais”:

As milícias sempre agiram de forma muito violenta e truculenta, no que eu chamo de ações para matar ou morrer. Por seus membros serem, na maioria das vezes, das próprias forças policiais do Estado, as milícias possuem um know how de ação muito preciso, bem como o acesso a armamentos pesados, que só as polícias deveriam ter.
Veja o mapa iterativo feito pelo G1, que mostra a presença das milícias no Estado do RJ
Neste texto, o qual eu escrevo ao mesmo tempo em que faço minhas pesquisas iniciais sobre as milícias cariocas, pretendo demonstrar como o Clã Bolsonaro está diretamente ligado a elas, não apenas nos discursos, mas na vida prática. Eu desconfio que ele e todos os seus filhos ganharam cada vez mais força na política exatamente por serem milicianos.
É engraçado que, quando eu comecei a ter a ideia de escrever esse texto, eu tive um sonho (ou seria pesadelo) de que estava sob ameaça de morte pelo clã, e tive que deixar o país! Claro que isso não irá acontecer, até pelo tímido alcance que meus textos possuem, porém, esse é o modus operandi das milícias: exterminar quem quer que seja considerado “inimigo”. Esse discurso esteve presente durante a campanha do Bolsonaro, quando ele disse que “exterminaria” os “inimigos vermelhos”.
–> Eu gostei muito da definição da Wikipedia sobre as milícias: “[…] Stricto sensu, o termo refere-se a organizações compostas por cidadãos comuns armados (1) (apelidados de milicianos ou miliciantes), ou com poder de polícia que, teoricamente, não integram as forças armadas ou a polícia de um país (2)”.
1) A primeira ligação que faço é sobre a maior retórica utilizada por Bolsonaro e por seus filhos durante toda a campanha: a de armar cidadãos comuns, por meio da flexibilização da posse de armas. Quando chegou à presidência, não demorou para que lançasse o Decreto nº 9.685, de 15 de janeiro de 2019 , que trata sobre tal flexibilização. Ao ler o decreto, vemos que praticamente qualquer pessoa que tenha dinheiro para comprar uma arma de fogo está apta a conseguir a posse. Afasta-se a discricionariedade da Polícia federal de concedê-la. Da mesma forma, o discurso é enfático quanto à privatização da segurança – que deve ser estritamente pública – porquanto justifica-se a posse de armas para que “cidadãos de bem” se defendam de “bandidos”.
Assim, a mentalidade do miliciano é a de que a posse de armas deve flexibilizada, para que eles próprios possam tê-las sem maiores problemas. Há uma ideia aliada também à masculinidade e à virilidade, que é a de ameaçar o outro com a arma, de intimidar o outro com arma, de defender-se do outro “heroicamente” com a arma, de realizar a sua própria segurança e a de seus pares de forma “legítima” com a arma.
2) A segunda ligação que faço é a de que o Bolsonaro não faz parte do quadro do Exército há anos, e pelo que sei, ele nunca integrou qualquer quadro policial, seja civil, militar ou federal. Apesar disso, seu discurso sempre foi militarizado, e ele sempre enalteceu essas corporações, não obstante nunca mais tenha trabalhado para elas. Assim, fica evidente o discurso miliciano, que é o de agir como uma força policial sem sê-la oficialmente.
–> Ainda, segundo a Wikipedia, “Recentemente, no Rio de Janeiro, o termo “milícia” foi associado a práticas ilegais. Geralmente são grupos formados em comunidades urbanas de baixa renda, como conjuntos habitacionais e favelas, sob a alegação de combater o narcotráfico (3), mantendo-se com recursos financeiros provenientes de venda de proteção, de televisão a cabo clandestina, de botijão de gás e de loteamentos ocupados”.
3) Assim, a terceira ligação que faço é sobre quem é o tal “bandido” que o Clã Bolsonaro tanto fala, para além dos delírios sobre esquerdistas, comunistas… Esse inimigo é o traficante de drogas, tão malfadado devido à guerra às drogas que vivemos no Brasil, a qual não mata o playboy da classe média que cheira pó traficado em festas nas coberturas da Barra da Tijuca, mas sim o jovem negro favelado, sempre bandido em potencial, sempre um traficantezinho potencial. É por isso que a milícia tenta se legitimar perante a população, ela tenta se heroicizar pois combate o “maior inimigo do Brasil” (depois dos comunistas, é claro!). Ela vem com um discurso deslumbrante sobre oferecer proteção e apoio aos moradores das comunidades contra o mal, que é o dono do morro. Assim, ela tenta passar mostrar que é o “bem”, na dicotomia construída do “bem x mal”.
Os milicianos são caras experientes, sempre “ex alguma coisa”: ex policial, ex bombeiro, ex miltar, ex agente penitenciário, porém, eles podem ser também ativos. Por isso, eles sabem atirar tão bem, extorquir tão bem, guerrear tão bem. Eu não vejo qualquer diferença entre milicianos e traficantes (minto: milicianos são bem piores), a não ser que o discurso dos milicianos pode ser mais bem aceito pela classe média alienada, afinal, eles estão “protegendo” a comunidade dos “bandidos”, apesar de serem e agirem exatamente como tais!
4) A minha quarta ligação é a de que, com a expansão das milícias, as quais, no início, pareciam ótimas por “combaterem traficantes e protegerem as famílias”, mas que pouco a pouco foram se tornando um estorvo para os favelados, seus membros passaram a ocupar cargos políticos legislativos, e passaram a ser presença constante da política. A meu ver, essa é também a história do clã Bolsonaro, pois não há apenas convicções – há provas de que os seus filhos trabalham juntos dos milicianos, e que o próprio presidente da república tem ligações estreitas com eles. Como exemplo, o miliciano e assassino de Marielle, Ronnie Lessa, (a mando de quem?) é vizinho dele – eles moram em condomínio de luxo na Barra da Tijuca.
Ah, milicianos são muito ricos! Eles extorquem os pobres favelados, ao cobrar por serviços de fornecimento de gás, água, transporte alternativo, de TV a cabo, e pela própria “segurança” que eles fazem nas favelas, além de atuarem fortemente na grilagem de terras e na ocupação ilegal de territórios, alguns que fazem até parte de reservas ambientais.
5) A minha quinta ligação é a de que muitos membros de corporações policiais se identificam com o discurso maniqueísta do Bozo, pois os maiores membros das milícias, como já escrito, são ex policiais, ou aqueles na ativa. Assim, essa lógica de guerra entre polícia x traficantes e milícia x traficantes e a identificação entre os dois grupos – milícias e polícias – é mais do que real, é realmente assustadora. É por isso que eu posso ficar esperando por toda a minha vida uma ação policial tão rígida contra milícias, da mesma forma como o é contra os traficantes, que não vou vê-la. Os grupos estão muito ligados. E ambos se identificam fortemente com as bozoideias.
Agora, passarei aos fatos. Um dos maiores escândalos de todos os tempos deveria ser a ligação de um Bozofilho com a milícia, porém, sabemos que tudo aqui no Brasil tem dois pesos e duas medidas.
Segundo a BBC, o ex assessor de Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, que esteve sob investigação do COAF (RFB) por realizar movimentações financeiras atípicas, refugiou-se na favela de Rio das Pedras, que é dominada pela milícia conhecida como “Escritório do Crime”. Por que ele se sentiria seguro lá?
Flávio também fez, quando era Deputado Estadual, uma homenagem na ALERJ para um miliciano e ex policial militar chamado Adriano Magalhães da Nóbrega, que está foragido, já que tem muita culpa no cartório. Ainda, de acordo com a Carta Capital, a esposa desse ex policial miliciano, chamada Daniela da Costa Mendonça Nóbrega, passou a trabalhar diretamente com Flávio Bolsonaro, junto da mãe do miliciano, chamada Raimunda Veras Magalhães.
Ainda na atuação de Flávio Bolsonaro na ALERJ, ele foi o único a votar contra a CPI das Milícias em 2007, cujo relator era Marcelo Freixo (PSOL). Ele também foi o único a votar contra a concessão da Medalha Tiradentes a Marielle (a mesma que concedeu anos antes ao miliciano), em 2018.
Ademais, de acordo com o Justificando (reproduzirei o trecho da matéria): “Segundo a Agência Pública, nas eleições de 2018, Flávio Bolsonaro foi o senador mais votado em Rio das Pedras, com 8.729 votos, 17% do total.”. Nem preciso comentar mais nada.
De Acordo com o The Intercept Brasil e com o Pragmatismo Político, o Clã Bolsonaro também é amigo dos milicianos e PMs “Alan e Alex”, que foram presos em uma Operação policial denominada “Quarto Elemento” (tem foto no Inxta). Ademais, a irmã desses PMs milicianos, conhecida por “Val do Açaí”, era tesoureira do PSL, partido do Clã Bolsonaro.
As ações pró-milícia do Bozofilho não são atípicas, já que seu próprio pai, em 2003 e em 2008, proferiu um discurso na Câmara dos Deputados que enaltecia as milícias, por meio daquela ultrapassada justificativa de que elas garantem segurança para a população das favelas e, consequentemente, são “do bem”.
Veja a reprodução do discurso dele na Câmara dos Deputados, em 2008, feita pelo The Intercept:
“Querem atacar o miliciano, que passou a ser o símbolo da maldade e pior do que os traficantes. Existe miliciano que não tem nada a ver com ‘gatonet’, com venda de gás. Como ele ganha 850 reais por mês, que é quanto ganha um soldado da PM ou do bombeiro, e tem a sua própria arma, ele organiza a segurança na sua comunidade. Nada a ver com milícia ou exploração de ‘gatonet’, venda de gás ou transporte alternativo. Então, Sr. Presidente, não podemos generalizar.”
Da mesma forma, eu não creio haver coincidência em ser vizinho e posar em fotos com um miliciano, se você não o é. Como já escrito, o Bolsonaro é vizinho de um dos assassinos de Marielle, que é um PM reformado e miliciano, chamado Ronnie Lessa e saiu em fotos com o outro assassino, que dirigia o carro, Élcio Queiroz, ex-PM, também miliciano, expulso da corporação por diversas falcatruas. É interessante notar que a vida de luxo que Ronnie Lessa levava é incompatível com seus proventos de policial reformado. De onde vem todo o dinheiro que possui? Das atividades ilegais e assassinas milicianas.
Não podemos nos esquecer de que todo o Clã Bolsonaro permaneceu em silêncio quando da morte de Marielle Franco. E, só mais um adendo, eu também desconfio que o atual governador do Rio de Janeiro, vulgarmente conhecido como “Whitney Houston”, tem alguma ligação com milicianos. Ele estava sorrindo e esbravejando ódio ao lado de dois candidatos a deputados estaduais do PSL, que quebraram uma placa da rua Marielle Franco. O seu discurso (tão horrendo quanto aos do clã Bozo) também foi pautado na violência contra os tais “bandidos”, que são sempre os traficantes, nunca os milicianos! Ele disse uma vez que “daria tiro na cabecinha de bandido”: esse é um discurso bélico, violento e miliciano, contra os seus maiores rivais, os traficantes de drogas (geralmente, zé ninguéns, instrumentalizados por peixes grandes. Já os milicianos, esses são verdadeiramente poderosos, estão na raiz do comando, agem com exatidão, precisão, expertise, muito porque possuem braços oficiais do Estado em sua composição e a própria proteção deste para agir).
Veja o discurso de um miliciano que sequestrou uma equipe do jornal O Dia, em 2008, a qual iria fazer uma matéria sobre a atuação das milícias cariocas. Note o quanto essa fala é semelhante aos discursos do Clã Bozo e de Wilson Witzel:
“Existem muitos policiais corruptos, mas nós não somos corruptos. A gente se mata de trabalhar aqui, leva tiro de vagabundo para vocês chegarem e estragar o projeto social que estamos fazendo. Nós não somos bandidos”, dizia um dos milicianos.
Por que o Bozo tem tanta raiva e tanto ódio de “bandidos”? É porque ele preza pela segurança do “cidadão de bem”? Não! É porque os traficantes são os maiores rivais dos milicianos no que tange ao controle das favelas e, consequentemente, à busca incessante por grana, a custa dos pobres, como sempre. Essa é a chave para entender o discurso bélico, preconceituoso, violento e truculento dele, e não a bobeira repetida pelos “de bem” da classe média, que é pela vida, pela segurança, etc, etc. Esse é um embate entre criminosos, em que, mais uma vez, a classe média escolheu ser marionete, e elegeu milicianos para comandá-la (e a gente ainda vai se dar muito mal por causa dessa escolha).
Por fim, em 2012, foi finalmente sancionada por Dilma Rousseff a Lei nº 12.720, de 27 de setembro de 2012 , que altera alguns artigos do Código Penal de 1940 e determina a constituição de milícias como crime.
Desta forma, qualquer associação com milícias é crime. Ser miliciano é ser criminoso, e isso não é um delírio da minha cabeça, essas não são palavras em vão. Infelizmente, estamos assistindo, estarrecidxs, à milícia nos governar, no mais alto escalão do governo. Mais uma página vergonhosa da nossa história, que eu espero que nossos descendentes possam estudá-la, se ainda houver escolas, e se conseguirmos reverter alguns dos desmontes que serão feitos pelas milícias que agora ditam, de fato, todas as regras.
Algumas Fontes:
https://medium.com/@alicequintao/as-mil%C3%ADcias-no-rio-de-janeiro-4087f401aa20
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46559926
https://www.pragmatismopolitico.com.br/2019/03/mapa-ligacoes-bolsonaro-com-as-milicias.html
https://theintercept.com/2019/01/22/bolsonaros-milicias/
(Último acesso em 20.03.2019)