Não existe um dia em que eu durma tranquila, agarrada à Meg, pensando no que ainda pode acontecer comigo, com ela, ou com a minha família. Já pensei em mudar de cidade, até de país. Eu não tenho mais emprego, eu não tenho mais ânimo para enfrentar os processos seletivos nos melhores escritórios de advocacia de São Paulo. Eu deixei com que o medo e angústia tomassem conta de mim, e levassem, com eles, o sonho de me tornar uma das melhores advogadas criminalistas da cidade.
Foram só oito meses de relacionamento com Victor, mas eu não sei o quanto ainda me resta de vida para que eu possa tentar me reestabelecer. Essa história vai parecer um mero clichê, mas foi assim mesmo que começou: eu era a mulher mais linda que ele já tinha visto, diferente de todas as outras que ele havia conhecido. Eu era a “mulher da vida dele”, e nada no mundo poderia nos separar.
Eu estava encantada, porque o Victor era um advogado empresarial de renome. Nossos assuntos eram inesgotáveis, e a gente poderia passar horas no telefone sem notar que o dia já era outro. Ele me recheava de presentes, de mimos, de carinhos. Não demorou muito para que ele me apresentasse para a sua família – e ele disse que poucas tiveram essa sorte!
Bom, e eu só não me achava a pessoa mais sortuda do mundo, porque ainda não tinha chegado o dia da prova da OAB: se eu passasse de primeira, aí sim, seria a mulher mais feliz do universo!
No dia do almoço em família, o Victor fez um pedido inesperado: que eu trocasse a minha roupa, porque aquela não estava legal. Ele usou a palavra “vulgar”, e depois riu, essa palavra é formal demais. Eu estava com uma saia e uma blusinha larga, com um decote muito normal para qualquer início de outono. Eu o questionei, e ele, muito calmo, me segurou pelos braços e disse que era a única coisa que ele iria me pedir naquele momento, e que ele ficaria muito chateado se eu não o atendesse. Troco a saia, troco a blusa, troco tudo, coloco o quê? Eu não sabia o que fazer. Ele notou que fiquei desconcertada e me sugeriu colocar uma calça jeans e uma camiseta, pois seria um almoço simples. Nada de batom vermelho, “só hoje”, porque não combinava com a ocasião.
Depois de ter o pedido atendido, ele me beijou e disse, pela primeira vez, que me amava. Incialmente, eu tinha ficado sem chão, agora, fiquei nas nuvens.
Nossos encontros se tornaram cada vez mais frequentes. O Victor adorava me buscar na porta da faculdade e fazia questão de exibir o carrão que tinha, para todo mundo que passava por ali.
Sexta-feira, dia de finalmente conhecer os seus amigos, não sem antes um alerta: eu poderia ficar desconfortável com umas “brincadeirinhas” que eles costumavam fazer, mas nada de mais, eram só piadas e, é claro, o Victor não concordava com nenhuma delas. Ao sair do carro, tudo diferente. Chegou um momento em que saí de perto deles, pois não aguentei escutar as tais “piadas” que, pra mim, eram uma tremenda falta de respeito a grupos minoritários.
O Victor me chamou num canto, perguntou se estava tudo bem. Eu respondi que não mesmo. Na mesma hora, escutei de um dos amigos que eu era muito “mulherzinha”, sensível, não tinha senso de humor e que, se eu continuasse desse jeito, o Victor iria me largar em pouco tempo. Não bastasse, outro amigo interveio e disse que eu não deixaria o nosso namoro acabar, senão, tentaria passar na prova da OAB no mínimo umas quatro vezes, sem o Victor para me “ajudar a estudar”.
A resposta daquele que era meu namorado foi simplesmente essa: mulher é assim mesmo. Já está na hora de irmos embora. Eu não acreditei, ele não me defendeu, não ficou do meu lado. No carro, um esporro: se eu continuasse assim, ele nunca mais me levaria para sair com os seus amigos. Dito e feito.
Nossos encontros nos fins de semana diminuíram, já que havia espaços em que eu não era bem quista. Chamadas não atendidas, mensagens não respondidas. O Victor começou a sumir. Num sábado, ele chegou a minha casa, um pouco bêbado, e foi a primeira vez em que eu o confrontei. Eu já estava desconfiando que esses encontros nos fins de semana não eram só com amigos. Vi, sem querer, uma mensagem chegando de madrugada, um nome de mulher. Finalmente, perguntei quem era ela.
Ele apenas me fitou, olhou profundamente em meus olhos. Pegou um copo d’água, bebeu meio gole. A Meg estava passando, cismou em cheirar o seu pé. Ele chutou a Meg na minha frente. Ela gritou, eu gritei. Escutei o meu primeiro cala a boca. Eu o expulsei da minha casa, mas ele pegou a Meg pelas patinhas traseiras e a suspendeu no ar, de cabeça para baixo. Eu implorei para que ele a soltasse, mas ele impôs uma condição: que eu nunca mais perguntasse da vida dele e que não duvidasse do amor que ele sentia por mim. Que eu era injusta e que, se eu estava insinuando que ele estava me traindo era porque, na verdade, eu que o estava fazendo. Eu concordei, já em prantos, e ele jogou a Meg no sofá. Depois disso, me deu um beijo e disse que iria dormir, esperando o meu pedido de desculpas, na cama.
Eu perdi a conta de quantas vezes eu me via pedindo desculpas para ele, sem mesmo saber o motivo. Eu estava sempre errada. Eu era louca, dramática, insana, burra. Nenhum outro homem iria me aguentar, e eu tinha sorte – sim, a mesma palavra lá do iniciozinho do namoro – de ele ainda estar comigo.
As ofensas se tornaram constantes. Quando, finalmente, assumi os meus cachos, ele me disse, em tom de ultimato, que era para eu dar um jeito nesse meu cabelo “sarará”. Ele controlava o meu corpo, e ameaçava me deixar se eu engordasse mais – eu já estava gorda para os parâmetros normais e “saudáveis”: sim, ele dizia que essa preocupação concernia somente à minha saúde.
Quando me olhava no espelho, não sabia mais quem era aquela mulher ali refletida. Eu me perdi em mim mesma, mas de um jeito oposto ao meu tão sonhado autoconhecimento. Ao mesmo tempo, as nossas noites juntos, nas maratonas de séries, as pipocas com Ajinomoto, as piadas espontâneas dele que me faziam rir, um abraço inesperado depois de fazer um brigadeiro de panela… Isso me fazia ficar. Eu estava tentando preencher um vazio por meio desse relacionamento. Mas hoje eu sei que foi exatamente o relacionamento que criou esse vazio em mim.
Passei a vestir casacos no escritório em que fazia estágio com maior frequência. Na academia, parei de usar somente tops. De vez em quando, eu colocava uma echarpe e dava a desculpa de que era por conta do ar condicionado em modo “Polo Norte”, o que arrancava risos dos meus colegas. Na verdade, eu estava escondendo as marcas de arranhões, de puxadas fortes e empurrões que o Victor me dava, sempre que estava “chateado” ou “inconformado” com alguma coisa que, de novo, eu havia feito de errado.
A minha dependência psicológica me deixou “cega”, e não havia mais ninguém ao meu redor que pudesse abrir, novamente, os meus olhos. Afastei-me dos meus amigos e das minhas amigas. Passei a visitar meus pais, que moram no interior, com menor frequência. Não participava nem mesmo dos happy hours do escritório, pois havia muitos homens, e eles poderiam dar em cima de mim. De repente, me vi sozinha com o Victor. Na verdade, via-me sozinha neste mundo, pois ele estava comigo somente quando e da forma que ele queria.
Em dezembro de 2015, marcamos a nossa primeira viagem: passaríamos o ano novo em uma pousada em São Francisco Xavier, um lugar muito romântico, perfeito para uma viagem em casal. Finalmente, realizaria esse sonho! Nos dias que antecederam a viagem, o Victor estava mais carinhoso e atencioso. Pensei que seria uma ótima oportunidade para nos reconectarmos, e, quem sabe, ele finalmente pararia com as agressões verbais (ainda não enxergava os puxões de braço e os empurrões mais fortes como agressões físicas).
No dia 31/12, recebi muitas mensagens no WhatsApp, textos que perguntavam por onde eu andava, por que eu havia sumido, e desejando que 2016 fosse um ano de muitas conquistas para mim. O Victor percebeu a minha movimentação no celular e passou a me questionar. Eu disse apenas a verdade, que estava respondendo a mensagens de feliz ano novo. Ele perguntou com quantos homens eu estava conversando e se eu não achava que estava errada em fazer isso, já que eu era a namorada dele, e não uma “mulher solteira vadia qualquer”. Eu não queria brigar, queria um recomeço para mim, para nós dois. Jantamos à luz de velas, soltaram fogos no restaurante, bebemos vinho, abracei desconhecidos ao som de “Feliz 2016”. Eu só não sabia que aquelas palavras ali eram tão vagas. Eu havia perdido a felicidade que se encontrava dentro de mim e, realmente, não sabia mais como resgatá-la.
Voltamos à pousada, o Victor me enquadrou na parede e pediu para que eu o entregasse o meu celular. Estava com medo, mas estava também decidida. Eu não iria entregar meu celular, eu não estava fazendo nada de errado, ele não tinha o direito de espionar as minhas conversas que, por sinal, tornaram-se tão raras! Ele me ameaçou, disse que era melhor ou o fazer de bom grado. Caso contrário, qualquer consequência seria somente a minha culpa.
Não. Não vou entregar meu celular. Não vou entregar a minha vida para você. Não mais. Senti o primeiro tapa na cara. “Me respeite, ou eu te mato”. “Me respeite primeiro”, disse eu. “Você não merece respeito, sua puta”. Senti um soco nos meus olhos. Comecei a sangrar (o corte foi no supercilio). “Olhe o que você está me obrigando a fazer! Tudo isso porque se recusa a me obedecer. Você não vale nada, você é gorda, feia, você é burra. Vai morrer sozinha”. Mais um soco no estômago (literalmente).
Comecei a gritar, pedia socorro. “Cada vez que você gritar, é mais um soco que eu vou te dar. É melhor você parar”. Eu não parei, ele também não parou. Um casal do quarto vizinho escutou e bateu à nossa porta, perguntou se estava tudo bem. O Victor respondeu que sim, que aquela era a forma como nós nos “amamos”. Ele me abraçou e eu não conseguia parar de chorar. Ele pediu desculpas, mas ressaltou que isso era tudo culpa minha, que eu o deixava assim. Que eu despertava o pior que havia nele. Mas que podíamos consertar tudo isso.
Assim, ele começou a me despir, e eu pedi para que ele parasse, para que ele me soltasse. “Não, não, por favor, me solte”. Ele dizia, “eu te amo, vamos consertar isso, vamos superar”. Ele me jogou na cama, colocou-me de costas, abriu as minhas pernas. Eu olhava fixamente para a parede do quarto. Havia adesivos que formavam frases do Pablo Neruda, sob um papel de parede cor de abóbora. Eu não estava mais ali, o que restava da minha alma havia se tele transportado para alguma ilha do Oceano Pacífico Sul.
Eu sabia de todo o trabalho que demandaria para que eu pudesse me redescobrir, para novamente saber quem eu era. Quatro meses se passaram e as feridas permanecem tão abertas. Eu queria ter dito tudo isso na Delegacia de Mulheres, mas eu era mais uma mulher (mimada, imatura) que escolheu “um pouco mal” um namorado. Como o Victor disse, a culpa de tudo aquilo era minha, e equipe da Polícia parecia ratificar essa premissa.
O Victor está cumprindo uma prestação social educativa e eu estou tentando me manter viva, após ter morrido, todos os dias, durante – e apenas – 8 meses.
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