Imagem: Eu sem fronteiras
Nem todas as regras e os regulamentos que seguimos, ao vivermos em sociedade, estão codificados. Assim, para Bourdieu (1990), mesmo nas mais modernas sociedades, as regras e os regulamentos nem sempre estão escritos e codificados. Os agentes pensam e atuam a partir de costumes e práticas que são internalizadas como regras de um jogo. Estas podem não estar explícitas e existem mesmo apesar das codificações jurídicas. Portanto, a partir de regulamentos transmitidos oralmente ou de forma escrita, e de costumes sucessórios, como o matrimônio, os sujeitos, a partir de estratégias, internalizam e agem de acordo com o que ele denomina de “sentido do jogo”.
Assim, o ato de publicar o que está implícito é uma verdadeira arte, pois quem o faz consegue externalizar práticas e conceitos que só existiam de forma implícita e até inconsciente. Portanto, a partir da racionalização e da valorização do formalismo – da forma e do seu simbolismo – muitos atos só se tornam oficiais – passam a “existir” -, quando são oficializados, publicizados ou homologados.
Parto desse princípio para pensar que a superexposição nas redes sociais se tornou algo comum, pois é como se os acontecimentos da vida, do cotidiano, ou as ocasiões especiais, só são consideradas como realmente existentes quando publicadas. A publicação não é apenas uma forma de oficializar o evento, mas é condição para a sua existência de fato.
Portanto, penso que, às pessoas que se super expõem nas redes sociais e publicam constantemente os fatos de sua vida, para além do vício em si, das pretensões em se mostrar felizes, em exercer a vaidade e alimentar o ego, há essa ideia de que, sem a publicação, é como se aqueles eventos não tivessem sequer ocorrido. E isso vai das tarefas mais básicas do cotidiano, como as postagens sobre comida, passa pelo que há de mais íntimo e privado em nossas vidas, até chegar aos momentos tidos como mais especiais, como um casamento, um aniversário, uma promoção no emprego.
Para Simmel (2006), os indivíduos estão sempre em busca de uma diferenciação, de um descolamento da massa e buscam, assim, aprimorar suas qualidades, seus conhecimentos e sua elevação social. Portanto, tentamos nos distanciar das massas, a partir de uma diferenciação que, muitas vezes, é artificialmente criada. Assim, as práticas compartilhadas se restringiriam àquelas mais simples e primitivas, e o sujeito, não satisfeito em se ver homogeneizado, buscaria se distinguir e se particularizar a todo momento.
As redes sociais possibilitam que as pessoas se sintam como “celebridades”, e se deem a importância que outrora era conferida apenas a artistas vinculados/as à TV, a revistas, a filmes. Agora, pode-se pensar que todas/os estão curiosas/os para saber da nossa vida privada, das nossas capacidades, dos nossos relacionamentos, das nossas aventuras. Os “likes” ratificam essa importância que nos damos, ao postarmos tudo que somos, tudo que fazemos, ou tudo que forjarmos ser ou que um dia pretenderíamos fazer.
A busca por essa diferenciação, para que o status de “celebridade” se mantenha e se expanda para além do círculo de amigos/as mais próximos/as, torna-se uma obsessão que leva muitas pessoas a entrarem em uma disputa para demonstrar que são mais bonitas, mais inteligentes, mais descoladas, mais viajadas, mais cools, mais felizes. No caso dos padrões de beleza, vejo que essa diferenciação é a mais complicada, pois primeiro se deve homogeneizar, para depois se criar a uma diferença dentro dessa homogeneização. Assim, as cirurgias plásticas são as mesmas, o padrão de magreza buscado é o mesmo, os hábitos alimentares são os mesmos, mas dentro deles haverá características extremas particulares, como a buscar por ser aquela que está mais magra, com a barriga mais sarada, com a boca mais carnuda, com o maior cabelo, e que segue a dieta mais à risca. Essa pessoa também buscará trazer inovações, quase sempre na forma de publicidade velada.
Para Goffman (1959), nas interações sociais, sempre encenamos papeis, de acordo com o contexto e com os/as atores/as com os quais interagimos. Assim, nunca somos as mesmas pessoas nas diversas relações sociais. Acredito que as redes sociais sejam um propício local para exercemos papeis que podem ser destoantes dos papeis que exercemos no mundo real. A excessiva felicidade é, talvez, a maior marca das redes sociais – nunca estamos tristes ou passamos por problemas. E precisamos exercer o papel (performance) com excelência, para que este tenha um ar de mínima veracidade e os/as observadores/as não questionem nosso comportamento e o que queremos afirmar com ele.
Quanto mais nos expomos, mais nos tornarmos vulneráveis. Da mesma maneira, mais estamos sujeitas à apropriação da nossa imagem e dos nossos dados, e mais nos tornamos viciadas na aprovação e na ratificação do que somos, do que fazemos e do que escrevemos/as e falamos pelos/as outros/as. Acabamos por entrar em um ciclo vicioso que agrava problemas relacionados à autoestima e à autoaceitação. Por sermos seres sociais, a interação com os outros nos é vital. Porém, em um ambiente dominado apenas pelo irreal e que demanda o exercício de papeis difíceis de serem seguidos e mantidos, não é incomum que o indivíduo se torne, paradoxalmente, cada vez mais antissocial, a partir de um lugar em que se sobrevive à custa de inúmeras interações, aceitações e ratificações.
Referências
BOURDIEU, Pierre. Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.
SIMMEL, Georg. Questões fundamentais de sociologia: indivíduo e sociedade. Rio de
Janeiro: Zahar, 2006.
https://ea.fflch.usp.br/obra/representacao-do-eu-na-vida-cotidiana