Foto: Marcha das Mulheres

O movimento feminista é, historicamente, um movimento de lutas e de resistências em relação às condições estruturais da sociedade e da forma como o Estado se organiza, exerce suas funções e implementa as políticas públicas.

Ao buscar diversos tipos de mudanças econômicas, políticas e sociais, o Feminismo se encontra à esquerda no espectro político. Mas todas as feministas devem ser, necessariamente, “de esquerda”? Podem existir feministas “de direita”, “liberais”, “conservadoras”?

Bom, confesso que, a meu ver, isso é um pouco difícil mesmo, mas não é incomum associar, em novos discursos, ideias “liberais” à identificação com o feminismo.

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Eu vejo que isso pode acontecer principalmente em relação às mulheres provenientes de classes médias e altas, que frequentaram a universidade, conseguiram se inserir no mercado de trabalho assumindo postos mais valorizados (tradicionalmente masculinos, o que não é incomum dizer que assumem “trabalhos de homem” – e é claro, ainda com muita desigualdade sim) e que vivenciam relacionamentos mais equilibrados e com divisão igualitária de tarefas domésticas, por exemplo.

Tudo bem, mas o Feminismo não é uma mera questão de emancipação individual, ainda mais quando fazemos recortes de classe e raça. O feminismo é um movimento coletivo e nunca será “satisfeito” ou “completo” enquanto houver outras mulheres exploradas e subjugadas. Isso quer dizer que, uma mulher branca com um alto cargo no mercado de trabalho, independência econômica e relacionamentos mais saudáveis, mas que ainda delega as tarefas domésticas à empregada doméstica – negra, pobre e explorada -, não pode ser o padrão na sociedade nem encerrar a luta feminista, como já muito ouvi e rebati.

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Ainda, mesmo para uma mulher de classe privilegiada, não basta ascender financeiramente e ocupar postos no mercado de trabalho tradicionalmente masculinos para se ver livre de diversas opressões. Ao mesmo tempo em que o neoliberalismo se apropriou do trabalho feminino, essencial para a dinâmica do capitalismo, com o falacioso discurso de emancipação individual, todas as condições estruturais da vida doméstica permaneceram intocadas. As tarefas domésticas, os cuidados dos filhos e das filhas e de qualquer outro membro familiar que necessite ficaram a cargo praticamente exclusivo da mulher.  Daí o surgimento das duplas, triplas e por vezes quádruplas jornadas.

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Ainda há um imenso abismo em relação aos salários recebidos por homens e mulheres com o mesmo nível de escolaridade ou até maior para as mulheres. Estas, ainda que tenham se inserido de forma mais ampla no mercado de trabalho, continuam ocupando postos mais desvalorizados, o que reflete as profissões nas quais estão inseridas: as do cuidado, da saúde, do ensino, da assistência, que não deixam de ser “extensões” no mundo público daquilo que historicamente foram confirmadas a exercer no mundo privado.

Outra questão perpassa o assédio sexual, algo que faz parte do cotidiano de grande parte das mulheres no mundo corporativo, e que muitas vezes é silenciado para que elas não percam seu trabalho, pois o assédio pressupõe hierarquias laborais.

Uma mulher encontra muito mais dificuldade para ascender em sua carreira, ainda que esta seja promissora: não por uma questão de escolha, mas porque é ela que terá que cuidar dos filhos, ela que tem que abrir mão de tudo e de qualquer coisa pela família, pelo marido, ela que também nunca foi ensinada a ter tanta ambição, mas sim a colocar todos em primeiro lugar, a dedicar-se aos outros, a viver pelos outros.

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As mulheres, principalmente quando realizamos recortes não apenas de gênero, mas também de classe e raça, continuaram a exercer, predominantemente o serviço doméstico, os trabalhos parciais, os trabalhos informais, a prostituição, a migração laboral, o que as tornaram, num contexto de minimização do Estado e do mercado desregulamentado, mais pobres, mais subjugadas, mais violentadas. Não é à toa que a pobreza tem cara: gênero, classe cor. As migrações são cada vez mais femininas. A chefia monoparental tende apenas a crescer.

Por fim, ter uma profissão renomada, um bom emprego e uma independência financeira não livram a mulher das diversas opressões e violências, o que reflete a presença do patriarcado tanto na esfera privada quanto pública da vida: violência doméstica: física, emocional, psicológica, financeira, sexual; feminicídio, estupros, assédios. A opressão do estado seria: a invisibilidade das mulheres, políticas que perpetuam papéis de gênero, falta de representatividade política das mulheres ou representatividade que conformam valores machistas e patriarcais (vide vária atuais congressistas), a exclusão das mulheres em relação à cidadania.

Assim, num estado neoliberal, os primeiros direitos ameaçados são os das mulheres. Podemos perceber, quando o atual governo passou a usurpar o poder, umas das primeiras coisas que fez foi a extinção das secretarias especializadas para mulheres e outras para as demais minorias. Isso leva à falta de orçamento para políticas que mitiguem a desigualdade de gênero. O Conservadorismo de um governo também impede o avanço em diversas pautas do movimento feminista, como as questões de violência, da descriminalização do aborto, além de perpetuarem visões tradicionais de família e de papéis de gênero. É um tipo de governo que não enxerga minorias, pois são como “não-seres” para quem está no poder.

Por isso, é estranho conceber o feminismo aliado a ideias que estão no seio do conservadorismo no âmbito cultural, do neoliberalismo nos âmbitos político e econômico, pois todos eles pressupõem e naturalizam a desigualdade de gênero, exploram e subjugam as mulheres ao mesmo tempo em que forjam uma emancipação econômica e uma possibilidade de autonomia às mulheres.

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O feminismo não é uma simples busca por igualdade entre homens e mulheres, assim de forma crua. Nós já possuímos essa igualdade formal, que está assegurada na Constituição. Porém, temos que voltar nossa atenção à igualdade material, que muitas vezes é alcançada por meio da equidade, nunca anulando diferenças, mas reconhecendo-as, como formação de identidade, sem pressupor que estas conduzem a qualquer desigualdade (lembremos que o sujeito neutro é muito perigoso – ele sempre existiu e é, em sua essência, masculino).

O foco no “eu”, ou a busca por exemplos que são exceções, e não o padrão, muitas vezes ocasionam uma negligência em relação à analise das condições estruturais que conformam a sociedade patriarcal e que estão massivamente presentes no capitalismo neoliberal que vivemos ainda hoje.

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Por isso, penso ser um pouco impossível que alcancemos a verdadeira autonomia, a emancipação não apenas individual, mas coletiva, nas atuais condições, nas quais o PODER (política/economia) é essencialmente masculino, nas quais capitalismo é essencialmente opressor. Às vezes, não dá apenas para reformar as instituições, mas temos que colocar tudo abaixo e recriá-las, de forma mais igualitária e nunca opressiva. Daí, não consigo visualizar mudanças profundas dialogando com o mesmo poderio de sempre, por isso é difícil e até muito injusto associar as ideias feministas às neoliberais – é difícil dar credibilidade a alguém que se diz feminista e “de direita”.

😀

OBS: pretendo escrever outro texto que aprofunde mais sobre os perigos das ideias feministas associadas ao neoliberalismo, fazendo uma análise das ideias de Nancy Fraser. Até queria que fosse nesse, mas ficaria muito extenso e cansativo!

 

Referências

CISNE, Mirla; GURGEL, Telma. Feminismo, estado e políticas públicas: desafios em tempos neoliberais para a autonomia das mulheres. SER Social, Brasília, 2012.

FRASER, Nancy. O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história. Mediações, Londrina, v. 14, n.2, p. 11-33, Jul/Dez. 2009.

MOGROVEJO, Norma. O feminismo na era do neoliberalismo hegemônico. Difusão Heretica, 2005.

SCHILD, Verônica. Feminismo e neoliberalismo na América Latina. Revista Outubro, n. 26, julho de 2016.

SCHUCK, Elena de Oliveira; VERGO, Terezinha Maria Woelffel. Nancy Fraser. Fortunes of feminism: from State-Managed Capitalism to neoliberal crisis. Revista Brasileira de Ciência Política, nº18. Brasília, setembro – dezembro de 2015, pp. 329-335.