Foto: “Me identifiquei”

Pensei em vários títulos para nomear esse texto, que é mais uma reflexão sobre como é difícil fazer com que simplesmente nos respeitem como seres humanos ou que a nossa narrativa não gire em torno de apenas uma coisa: estar com ou em busca de um homem.

Na minha trajetória de aprendizado no feminismo, a questão da autonomia, da auto-estima, do amor-próprio, foi o meu maior ponto de impulso para que eu começasse a desconstruir toda a inferiorização da mulher à qual fui ensinada, de todas as formas, em todos os lugares, e que fazia com que eu mesma acreditasse que hierarquias de status e de poder, falta de representação e relações assimétricas pautadas em desigualdades de gênero fossem normais.

Antes de me conscientizar, eu acabava sendo também responsável por reproduzir tudo aquilo que sempre me incomodou, mas do qual, de alguma forma, eu não conseguia me livrar.

“Segure suas cabritas que o meu bode está solto” foi uma das primeiras coisas que ouvi quando estava entrando na pré-adolescência, por uma mãe de um menino o qual tinha a mesma idade que a minha, e que também faz parte, ainda que distante, da minha família. Isso quer dizer que, se eu cresci pensando que eu tinha que me “preservar” e não dar bobeira para que qualquer coisa acontecesse comigo, vulgo, que eu fosse estuprada, é porque nós, as vítimas desse crime, somos eternamente responsabilizadas pelo que aconteceu. Afinal, as cabritas devem ficar em casa, ora, o bode é legitimado a atacar e ainda será exaltado por isso. (Isso porque a maior parte dos estupros ocorre “em casa”, por pessoas próximas da vítima. De que adianta então não sair de casa, evitar becos e não usar saias e etc?).

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Não tenho irmãos para comparar, mas eu senti, na criação dos meus pais (maravilhosa por sinal), que sempre houve uma preocupação extrema em relação a mim e que eles sempre ressaltavam que não é porque eles não confiavam em mim, mas é pelos outros, pelo mundo cruel que estava lá fora, pronto para me engolir, me destruir, me solapar.

A resposta está, simplesmente, na forma como a sociedade se estruturou e na forma como toda a criação patriarcal, pautada da dominação masculina e na desigualdade de gênero é passada pelas diversas gerações.

Percebi que a minha insegurança sempre foi fundada em duas “necessidades”, as quais não dependiam apenas de mim para satisfazê-las e que, ao contrário do que sempre disseram, elas não são imprescindíveis para a minha existência: 1. Encaixar-me no padrão de beleza branco, magro e ocidental; e 2. Ter um homem. O ponto 1 parece ser fundamental para que se alcance o ponto 2. E qualquer falha em atingir e também em mantê-los, a culpa seria única e exclusivamente minha.

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Algumas situações corriqueiras me fazem perceber o quanto é comum e naturalizada a objetificação e a despersonificação pelas quais nós mulheres estamos submetidas. O controle sobre os nossos corpos, a inferiorização e a ideia de incompletude nos reduzem a quase não-seres, não-sujeitos, em uma sociedade profundamente desigual e injusta em diversas esferas.

Por isso, quero pontuar aqui quatro situações pelas quais eu e muitas mulheres passamos que refletem o título desse texto.

  1. Chegar a um encontro de família e a primeira coisa a ouvir, cadê o namorado, não está namorando por que, e os gatinhos (…)?

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Recentemente, encontrei um bando de gente da família que não via há muito tempo. Um familiar, até para disfarçar, perguntou como estava a vida e talz, mas logo chegou à questão que estava pronta para fazer, depois dos rodeios. E aí, ta namorando? Não? É, você não costuma durar muito com os namoros, NÉ?

Mas isso é muito comum. Eu tinha tanta coisa para contar: mudanças boas na vida profissional que estão por vir, um mestrado maravilhoso numa faculdade excelente, a vontade de conhecer o deserto do Atacama, o tratamento da minha cachorrinha que está satisfatório, enfim. Só que parece que a nossa vida só tem UM objetivo no fim das contas e não importa se a gente está feliz e satisfeita com mil outras coisas, se esse ponto não for alcançado, nada mais interessa.

E essa pressão é horrível. Forja esse sentimento de incompletude e de vazio que nem sempre é real. Traz um sentimento de fracasso sobre algo que nada tem a ver com conquista, com esforço. Tira até mesmo a serenidade, a paciência e a sabedoria, elementos fundamentais para se encontrar (ou não) um parceiro. Faz com que permaneçamos em relacionamentos péssimos e abusivos só para poder ter um SIM à pergunta mais essencial e quente dos encontros de família.

  1. Ser assediada e ter que dizer “tenho namorado” para que parem de nos importunar e para que nos respeitem.

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(Isso quando duas amigas fingem que são lésbicas para evitar os assédios na balada e ainda têm que lidar com lesbofobia e um total desrespeito à sexualidade da mulher).

Quando eu morei na França, era muito comum homens chegarem do nada e perguntarem se eu não queria sair com eles. Do nada. Estava um dia no supermercado escolhendo uns tomates e esse homem começou a conversar. Eu, que não perdia uma oportunidade de treinar o francês, até conversei, falei quem eu era e tudo, mas ok, não era para passar de cordialidade e educação mesmo. Mas a conversa foi tomando um rumo esquisito e eu disse um não muito obrigada para o convite. Ele insistiu, eu querendo sair fora, mas sem saber como, falei de novo não. Mas por quê? E aí, o que veio na hora à minha cabeça: “Eu tenho namorado”. Tiro e queda. Foi ele que saiu fora.

Por que o homem só foi capaz de respeitar a minha vontade quando outro homem estava envolvido na história? Ou, na verdade, ele respeitou foi o tal do namorado? Por que, na balada, quando um homem assedia uma mulher e depois vê que ela está acompanhada, ele pede desculpa para seu parceiro e não a ela?

Objetos não são respeitados: são usados, possuídos, conquistados e dominados. Essa resposta se encontra na objetificação de nossos corpos e de nós mesmas, como um todo. É a nossa condição de não-sujeitas na sociedade machista-misógina-patriarcal. É a noção do respeito apenas ao semelhante, e este é sempre um homem. É por isso que, às vezes, nós mesmas pensamos que a solução está nisso, em ter ou mesmo fingir ter um homem que nos escolte.

Gostaria que o carinha tivesse encerrado a conversa depois do meu não, somente pelo meu não. É o que venho tentando fazer, ainda que seja mais difícil e falho.

  1. Todos os dias pensar na roupa que vou usar ao pegar ônibus, mudar rotas e trajetos, ou mesmo não sair de casa

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Essas limitações são horríveis e acabam se tornando fundamentais no nosso processo auto-conhecimento, construção de personalidade, formas de ver, sentir e interagir com o mundo, com a sociedade.

Era sofrível querer sair e: não poder pegar ônibus, porque é perigoso, não poder pegar taxi, porque é perigoso, não poder dirigir, porque é perigoso, é perigoso. Isso porque reconheço meu lugar de privilégio em nossa sociedade profundamente estratificada e moro em uma área bem central da cidade. O que pode refletir muito não só para a questão do lazer, mas também do trabalho: dependendo de onde for, do horário, o conselho é recusar para nada de “mal” acontecer. Recusar trabalho, eixo estrutural do capitalismo exploratório que vivemos, questão de sobrevivência nesse mundo de selva. E é isso aí.

Penso que, se há alguém culpado nisso tudo não são meus pais ou euzinha que peguei, pus meu melhor vestido e sai à noite de ônibus para o bar (#dream aqui em BH), mas, de novo, é um problema macroestrutural, institucional. E de todxs nós que reproduzimos tudo isso.

E a nossa vida acaba sendo determinada pelas limitações que esse problemão nos impõe. Morar em uma cidade grande, violenta (e são muitas as explicações para isso), com uma péssima logística de transporte, é sim muito pior para uma mulher, mas que, em hipótese alguma, ela continue a ser vista como a culpada por isso.

  1. Ao sair ou viajar com amigaS, escutar “mas vão assim, S-O-Z-I-N-H-A-S”? E qualquer coisa que acontecer… “mas é claro, moças saindo/viajando assim, S-O-Z-I-N-H-A-S”?

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Quem nunca julgou a menina que foi estuprada e morta dizendo que ela era culpada por estar viajando sozinha por aí? Ela estava com a amiga = estava sozinha; estavam sozinhas.

Pois pode haver mil mulheres JUNTAS, mas se não houver um homem ali, elas estarão sozinhas!

Foi uma das primeiras coisas que comecei a contestar no meu processo de desconstrução. A atitude era diferente quando eu estava acompanhada (sempre brinco, que estava escoltada) e chegava mais tarde em casa. Ou mesmo eu, quando pensava em fazer um mochilão na América do Sul: será que deixo para fazer quando estiver com um namorado? Veja como internalizamos e naturalizamos toda essa opressão maluca a que estamos submetidas.

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Por fim, apesar de todas essas chateações, dificuldades, desrespeitos e opressões que enfrento simplesmente por ser mulher num mundo construído por homens para homens, não deixo de reconhecer meus lugares de privilégio (cor, classe, sexualidade), e sei que há tantas outras violências que tantas mulheres sofrem em maior grau.

Colocarmo-nos como sujeitas autônomas, emancipadas e empoderadas seria a chave da questão, mas há uma extensa batalha contra um sistema político, econômico e social que é, em sua essência, exploratório, hierárquico, estratificado, discriminatório, violento, genocida, o qual devemos, antes de tudo, e coletivamente, vencer.

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Sigamos em frente. 🙂