Atenção: contém spoiler da série!
A série “Unbelievable”, ou “Inacreditável”, é daquelas de revirar o nosso estômago desde o primeiro momento: não sabia se sentia mais repugnância do estupro sofrido por uma adolescente da “ralé branca” (Marie) estadunidense, ou da forma como ela foi tratada pela polícia local.
Já escrevi várias vezes o quanto é emblemático o descrédito da palavra feminina no mundo social, e o quanto isso é responsável por tantos males que nós sofremos na sociedade patriarcal. Ainda confusa e em estado de choque, a protagonista teve de relatar milésimas vezes o crime, até o momento em que, por alguns desvios na narrativa (normais, já que ela também estava tentando entender o que acontecia), os detetives que iriam investigar o caso “concluíram” que ela poderia estar inventando o estupro. Fizeram o mais fácil: de forma totalmente coercitiva, levaram a vítima a retirar a queixa, encerraram a investigação e, com requintes de crueldades, ainda a processaram por denúncia caluniosa, algo que, segundo o defensor público da protagonista, nunca seria feito se fosse um caso de roubo ou furto, por exemplo.
Ainda é difícil para a sociedade perceber o estupro como crime, principalmente porque a maioria dos casos acontece dentro da própria casa da vítima e o grande vilão da história é o seu próprio parceiro, seu padrasto, seu pai, seu avô, seu tio, seu primo… São pessoas que estariam na roda das “confiáveis” e possuem diversos privilégios, como serem homens, mais velhos, espertos, cultivam o estereótipo de “bom moço”/ “trabalhador”/ “cidadão do bem”, e dificilmente teriam sua palavra desacreditada diante da polícia.
Leia mais: Estupro conjugal existe, nós só não queremos acreditar
É por isso que eu fiquei ainda mais surpresa com o descrédito em relação à vítima na série, já que o crime foi cometido por aquele que chamo de “estereótipo típico do estuprador” (que é longe de ser o padrão): o homem mau, desconhecido, que escolhe sua vítima sem maiores critérios, ataca-a em um beco escuro ou invade a sua casa no meio da madrugada; o estupro é sempre com penetração e, se ele não estiver mascarado, o fim da vítima pode ser a morte. Nesses casos há, geralmente, uma comoção na população (vide, no Brasil, alguns raivosos que clamam pela “castração química” desse tipo de estuprador), e mesmo a Polícia tende a encarar esse tipo de estupro como de interesse público.
Leia mais: Desconstruindo a “castração química” como solução para o crime de estupro
Portanto, vieram-me à mente outros motivos pelos quais os dois investigadores – dois homens, brancos e privilegiados – trataram com descuido, descaso e desprezo a vítima: a total falta de empatia de alguns homens em relação às vítimas de estupro, já que dificilmente eles sofrerão, um dia, com esse tipo de crime; a prioridade a casos que julgam “verdadeiramente importantes”, como homicídio, ou mesmo crimes contra o patrimônio (sabemos que, no Brasil, a posse de um carro popular vale mais que diversas vidas negras); e a falta de preparo ou a falta de disposição intelectual para encarar um caso tão complexo como o estupro, que vai muito além do universo jurídico, ao perpassar diversas áreas de conhecimento, como a psicologia, a sociologia, a assistência social e as ciências da saúde.
Assim, é somente quando duas detetives, alguns anos depois, começam a investigar casos de estupros em série, com muitas semelhanças entre eles, que o caso de Marie pôde ter um desfecho. Porém, nenhuma indenização do Estado a esse erro brutal seria capaz de compensar os danos psicológicos por ela sofridos, e que causaram tantos outros danos em sua vida como um todo.
A importância das mulheres na polícia investigativa – é na polícia onde tudo pode começar bem – ou muito mal
Antes de adentrarmos a “parte bonita” do mundo jurídico, composta por tribunais oponentes e por detentores/as do saber em ternos/terninhos alinhados, o criminoso e a vítima passaram pela parte hardcore nas delegacias de polícia, na quais nem sempre os direitos são preservados e, muitas vezes, os profissionais não estão bem preparados para lidar com o lado obscuro do ser humano, ou para se sensibilizar com vítimas que nada têm de semelhante com eles.
No Brasil, a criação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher – DEAMs, deu-se no ano de 1985, como uma decisão de Estado[1], para que passasse a existir um atendimento melhor, mais humanitário e mais conclusivo às mulheres vítimas de crimes como a violência doméstica e a sexual (uma muito atrelada à outra). A expansão das delegacias especializadas se tornou, posteriormente, uma reivindicação dos movimentos feministas.[2] As profissionais – o atendimento deveria ser realizado por profissionais mulheres[3] – foram treinadas para darem uma maior atenção à vítima, conferir a sua proteção e levar adiante as denúncias dos crimes por ela relatados. De acordo com Pasinato e Santos (2008, p. 20), as legislações que definem o âmbito de atuação das DEAMs nos estados, “[…] de modo geral, […] se refere[m] à apuração e investigação de delitos contra a pessoa do sexo feminino, privilegiando os crimes contra a pessoa (lesões corporais), contra a liberdade (ameaças) e contra os delitos sexuais (estupros)”.
Apesar de as DEAMs significarem um grande avanço para a investigação de casos de violência de gênero, para a sua prevenção e para a proteção das vítimas, elas existem somente em algumas centenas de municípios, num escopo de mais de 5 mil que existem no país[4]. É importante ressaltar que sua maior presença se dá na região sudeste, com destaque para o Estado de São Paulo.[5]
Dessa forma, permanece, na rotina do trabalho da polícia investigativa em delegacias comuns, o desprezo de alguns quando uma vítima de violência doméstica relata o seu caso e recebe, ao invés de apoio e compromisso na investigação do crime, conselhos como “homem é assim mesmo, ele teve um momento de fúria, mas vai passar”, ou “você quer mesmo denunciar o pai dos seus filhos, que pode ficar encarcerado e não conseguir mais prover a casa?”[6], ou “o que você fez para que ele perdesse a cabeça dessa forma?”.
Leia mais: Sobre a romantização do estupro
O que aconteceu na série nos faz pensar nas milhares de mulheres que passam pela mesma situação, a todo momento, em qualquer lugar do mundo. Sem treinamento, capacitação e sensibilização necessários para os profissionais na Polícia, contribui-se para que vítimas continuem culpabilizadas, suas mortes sejam concretizadas, para que crimes continuem sem solução e criminosos continuem com o aval para agir. Em “Unbelievable”, quando o estuprador foi levado a julgamento, em seu depoimento, relatou que Marie foi a sua primeira vítima, e como não houve qualquer investigação e punição, sentiu-se motivado a cometer outras dezenas de estupros.
A ausência de atendimento especializado, a falta de preparo e o desprezo da polícia em relação aos crimes de violência de gênero também desencorajam as mulheres a fazerem suas denúncias. Na série, percebe-se que Marie decide retirar a sua queixa ao sentir que seria mais fácil lidar sozinha com aquele trauma, a contar com os policiais para que o caso fosse solucionado.
No Brasil, a Polícia Militar também pode agir de forma preventiva
Por mais que tenhamos muito que avançar na prevenção e no combate à violência de gênero, não podemos deixar de reconhecer os avanços não só na Polícia Civil (e graças à nossa tradição de criar delegacias especializadas), como também na Polícia Militar. Com o marco da Lei Maria da Penha, de 2006, houve diversas ações multifacetadas e transversais, que mobilizaram diversas instituições.
Em princípio, vieram as DEAMs, posteriormente os Centros de Atenção e Acolhimento das vítimas – ainda que forma tímida – como a “Casa da Mulher Brasileira”, e agora a expansão das ações preventivas chamadas “Ronda Maria da Penha”, que, de acordo com o Senado Federal, já funcionam em “Curitiba, Porto Alegre, São Paulo, Campo Grande, Fortaleza, Salvador, Vitória e Manaus”[7]. Segundo o portal Migalhas, em meados deste ano foi iniciada, aqui no Rio de Janeiro, a “Patrulha Maria da Penha – Guardiões da vida”, que tem o mesmo objetivo das Rondas: uma maior proximidade com as vítimas, a sua assistência de forma contínua, a verificação do cumprimento, por parte dos agressores, das medidas preventivas e, assim, a diminuição da reincidência das agressões às mulheres vitimadas.
Somos um país machista e patriarcal que, infelizmente, perpetua a cultura do estupro – mas nem tudo está perdido
É mister observar o quanto a mitigação da violência contra a mulher pode ser muito mais efetiva quando as diversas instituições jurídicas trabalham de forma conjunta. Deve-se ressaltar a importância das profissionais da assistência social e das psicólogas, para o acompanhamento da vítima desde o momento da queixa-crime. Da mesma forma, somente com uma maior conscientização da sociedade sobre a gravidade do crime de estupro é que conseguiremos evitar que se perpetue a sua naturalização, a sua romantização e também a sua complacência – é preciso que, finalmente, “publicizemos” os crimes contra a mulher, os quais, por acontecerem majoritariamente no âmbito privado das relações[8], ainda não são encarados como de ordem pública e de responsabilidade do Estado (sujeitos, portanto, às políticas públicas de prevenção às vítimas e à punição dos agressores).
Acredito que muitos homens e, mais especificamente, os policiais e os operadores do direito, estão mais sensíveis em relação às vítimas de estupro, comprometem-se mais na investigação desses casos e não atenuam as punições. Porém, creio ser fundamental, como foi mostrado na série, a atuação, nos casos de violência de gênero, das profissionais mulheres (infelizmente, as instituições policiais são muito masculinas e o contingente feminino ainda é pequeno, tanto na civil quanto na militar). Muitas de nós já vivenciamos uma situação de violência, compartilhamos de traumas parecidos e sabemos que, independentemente da classe ou da raça, somos potenciais vítimas em um mundo que não foi feito para as mulheres. Na série, uma das detetives claramente se sensibiliza desde o início com a uma das vítimas do estuprador. A outra também se mostra empenhada e, em suas falas, ressalta o quanto é emblemático que casos de estupros sejam negligenciados pela polícia, pois isso corrobora a ideia de que tal crime é algo “menor” diante dos demais.
Por fim, é muito interessante notar que a investigação só deu certo quando elas passaram a atuar juntas e de forma harmônica, sem disputas e sem vaidades. Como aqui no Brasil não possuímos uma polícia única, isso me faz pensar que é substancial o trabalho conjunto da prevenção e da investigação – ambas com o maior número possível de mulheres policiais (devidamente capacitadas e feministas!)[9] – para que o crime de estupro deixe de ser algo predestinado, muitas vezes rotineiro, tantas vezes naturalizado, quase sempre tolerado, midiaticamente romantizado e judicialmente sem solução, na vida de inúmeras mulheres.
Fontes
LIMA, Lana Lage da Gama; SOUZA, Suellen André de. Representações De Gênero E Atendimento Policial A Mulheres Vítimas De Violência. R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.6, n.2, p. 61-85, jul./dez. 2009.
PASINATO, Wânia; SANTOS, Cecília MacDowell. Mapeamento das Delegacias da Mulher no Brasil. Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, Universidade Estadual de Campinas PAGU/UNICAMP, 2008.
Sites *último acesso em 31.10.2019*
http://www.cfemea.org.br/plataforma25anos/_anos/1985.php?iframe=1_as_deams_sp_pe
http://soumaisabahia.com.br/noticias/ronda-maria-da-penha/
Citações
[1] Pasinato e Santos, 2008, p.8.
[2] Idem.
[3] Ibidem.
[4] De acordo em a EBC (2019), existem DEAMs em apenas 8,3% das cidades brasileiras.
[5] Pasinato e Santos, 2008, p. 13.
[6] “Se, na vigência da 9.099/95, a pouca gravidade ou mesmo desmoralização da pena – como foi o caso do pagamento de cesta básica14 – eram argumentos favoráveis para não registrar; no contexto da Lei Maria da Penha, é justamente a gravidade da pena – tendo em vista as relações afetivas, familiares e de dependência econômica entre a vítima e o agressor – que é alegada para desestimular o registro.” Lima e Sousa, 2009, p. 14.
[7] Senado Federal, 2016.
[8] Lima e Sousa, 2009.
[9] Entretanto, segundo Pasinato e Santos, 2008, p. 23, os cargos investigativos na Polícia Civil são ocupados, predominantemente, por homens; “Uma pesquisa nacional realizada pela SENASP mostrou que, em 2004, existiam no país 69.156 profissionais (policiais e não policiais) na polícia. As mulheres correspondiam a 22% dos membros da corporação. A distribuição por sexo entre as funções é bastante desigual: nas chamadas funções operacionais (delegados, investigadores de polícia), há em média 4,6 homens para cada mulher; naquelas de apoio administrativo (como escrivão de polícia), há 0,8 homens para cada mulher (SENASP, 2006).
Os comentários estão encerrados.