Foto: Jornal de Brasília
Sempre digo que devemos analisar o crime de estupro e o estuprador muito além daquele estereótipo clássico: uma mulher passa num beco, à noite, chega um psicopata tarado, ela reluta e ela a estupra.
Esse cenário é, na verdade, o menos improvável de acontecer. O estuprador é um homem comum, muitas vezes “do bem” e quase sempre muito próximo à vítima.
Entre esses homens próximos, encontram-se os maridos, os noivos, os namorados, os amigos, os colegas de classe.
A relação sexual deve ser sempre consentida, por ambas (ou todas) as partes. Falando de um casal, os dois precisam querer e precisam dizer SIM. Uns dois anos atrás, nós precisamos fazer frente a uma propaganda de carnaval que incitava o estupro, pois contestava a validade do nosso não. Precisamos explicar que NÃO é NÃO e ponto! Ademais, quando a/o parceira/o não diz nada, muitas vezes porque está alcoolizada e em estado de inconsciência, não significa que ela dá um “aval” para o sexo, pois ela não tem condições de consentir. Dessa forma, não dizer nada, quer dizer NÃO. O sim só é sim quando é dito.
Por isso, uma relação sexual com uma mulher inconsciente é, na verdade, um estupro, pois o ato não foi consentido.
Quantas vezes eu já não ouvi de amigas que estavam bêbadas, nem se lembram do ato, mas não o considera como estupro? Quantas vezes elas não se culparam, porque foram elas que deram em cima do cara, foram elas que “sugeriram” fazer sexo? Estupro é uma palavra muito forte, mas, quando ele existiu, não podemos ter cautela em falar sobre ele, em denunciá-lo, em encará-lo e também superá-lo ao longo de nossa vida.
Outra questão é quando o estuprador forja um consentimento pela coação. Não precisaríamos dizer, mas o consentimento deve partir, livremente, do próprio sujeito, em condições normais para que se tome a decisão. Uma relação sexual feita a partir de ameaças, ou a partir de ideários patriarcais como “você é minha esposa/noiva/namorada e por isso tenho acesso pleno ao seu corpo, sempre que eu quero” é, na verdade, um estupro.
É por isso que, por mais que soe estranho ao senso comum, o qual, por sua vez, foi construído em bases machistas e patriarcais, existe sim estupro no namoro/noivado/casamento. Estar em um relacionamento não é “dever” sexo ao parceiro. Acabar “cedendo” também não é o mesmo que consentir, e essa situação configura o estupro. O que não podemos mais é amenizar essa situação, ao pensar que “tudo bem, ele é seu namorado/noivo/marido”.
Esse vídeo francês foi feito para uma campanha de conscientização sobre estupro no relacionamento, algo que é muito mais comum do que imaginamos, além de ser, claro, uma prática consagrada e secularizada pela sociedade patriarcal.
Como pode ser visto no vídeo, o companheiro é incapaz de entender o não de sua namorada. Ela até tentou explicar o que, muitas vezes, é inexplicável (ela não queria fazer sexo naquele momento e é isso), disse que talvez estivesse cansada, enfim, ele logo veio com aquela perguntinha clássica, “você não me ama mais?”, como se amar fosse igual a fazer sexo quando não se está com vontade… Ele ignora completamente a mulher que ele diz amar e a estupra. No fim, ele age como se nada estivesse acontecendo, pois em sua cabeça, ela não fez mais que a sua obrigação “natural” de namorada. Esse estuprador é tão comum, ao mesmo tempo tão difícil de identificar, pois, para variar, ele não é o tarado do beco, certo?
Historicidade: o tratamento à mulher pela nossa legislação
Sabe-se que nós fomos muito prejudicadas, ao longo da história, pelas leis patriarcais. As relações hierárquicas, baseadas na dicotomia dominação/subordinação e em assimetrias de poder, não eram meras ideias ou constatações, e sim, LETRA DE LEI.
Inclusive, não detínhamos nem mesmo de plena capacidade no Código Civil (CC) de 1916 (LEI Nº 3.071, DE 1º DE JANEIRO DE 1916). No texto da lei, apenas o homem era capacitado de direitos. Não custa explicar, mas aqui, homem significa homem, e não homem e mulher, como uns ainda insistem em dizer, em pleno século XXI.
Art. 2.° Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil.
Art. 3.° A lei não distingue entre nacionais e estrangeiros quanto à aquisição e ao gozo dos direitos civis.
Art. 4.° A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro.
Art. 5. ° São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente aos atos da vida civil:
I – Os menores de dezesseis anos.
II – Os loucos de todo o gênero.
III – Os surdos-mudos, que não puderem exprimir a sua vontade.
IV – Os ausentes, declarados tais por ato do juiz.
Em comparação, o CC de 2002 (LEI Nº 10.406 – DE 10 DE JANEIRO DE 2002) coloca “pessoas”, ao invés de “homem”, além de melhorar a redação, que era um tanto quanto preconceituosae discriminatória, certo?
Art. 1 o Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.
Art. 2 o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
Art. 3 o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:
I – os menores de dezesseis anos;
II – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;
III – os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.
De acordo com Dias (2006), era também obrigatório à esposa adotar o sobrenome de seu marido; ela tinha que pedir “permissão” se quisesse trabalhar; os filhos concebidos fora do casamento eram desprovidos de qualquer direito, o que onerava a mulher e a deixava “afamada”; não podíamos nos divorciar – só existia o desquite; o regime conjugal “normal” era o de comunhão universal de bens; não havia a obrigação de pensão alimentícia quando do “desquite”, ainda que a mulher não tivesse qualquer renda.
A nossa casa era a casa do marido. Se quiséssemos “desquitar”, nos tornaríamos homeless!
Art. 36. Os incapazes têm por domicílio o dos seus representantes.
Parágrafo único. A mulher casada tem por domicílio o do marido, salvo se estiver desquitada (art. 315), ou lhe competir a administração do casal (art. 251).
O casamento poderia ser anulado, se o marido constatasse que a mulher não era virgem! “Como assim alguém possuiu essa COISA antes de mim?”
Art. 218. É também anulável o casamento, se houver por parte de um dos nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro.
Art. 219. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge:
I – o que diz respeito à identidade do outro cônjuge, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal, que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado;
II – a ignorância de crime inafiançável, anterior ao casamento e definitivamente julgado por sentença condenatória;
III – a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável ou de moléstia grave e transmissível, por contágio ou herança, capaz de por em risco a saúde do outro cônjuge ou de sua descendência;
IV – o defloramento da mulher, ignorado pelo marido.
Aos homens, muitos direitos!
CAPÍTULO II
DOS DIREITOS E DEVERES DO MARIDO
Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal. Compete-lhe:
I – a representação legal da família;
II – a administração dos bens comuns e dos particulares da mulher, que ao marido competir administrar em virtude do regime matrimonial adotado, ou de pacto antenupcial (arts. 178, § 9º, I, c, 274, 289, I e 311);
III – o direito de fixar e mudar o domicílio da família (arts. 46 e 233, n. IV);
IV – O direito de autorizar a profissão da mulher e a sua residência fora do teto conjugal (arts. 231, II, 242, VII, 243 a 245, II e 247, III);
V – prover a mantença da família, guardada a disposição do art. 277.
Art. 234. A obrigação de sustentar a mulher cessa, para o marido, quando ela abandona sem justo motivo a habitação conjugal, e a esta recusa voltar. Neste caso, o juiz pode, segundo as circunstâncias, ordenar, em proveito do marido e dos filhos, o seqüestro temporário de parte dos rendimentos particulares da mulher.
Às mulheres, a total incapacidade civil!
CAPÍTULO III
DOS DIREITOS E DEVERES DA MULHER
Art. 240. A mulher assume, pelo casamento, com os apelidos do marido, a condição de sua companheira, consorte e auxiliar nos encargos de família (art. 324).
Art. 241. Se o regime de bens não for o da comunhão universal, o marido recobrará da mulher as despesas, que com a defesa dos bens e direitos particulares desta houver feito.
Art. 242. A mulher não pode, sem autorização do marido (art. 251):
I – praticar os atos que este não poderia sem o consentimento da mulher (art. 235);
II – alienar ou gravar de ônus real, os imóveis de seu domínio particular, qualquer que seja o regime dos bens (arts. 263, II, III e VIII, 269, 275 e 310);
III – alienar os seus direitos reais sobre imóveis de outrem;
IV – Aceitar ou repudiar herança ou legado.
V – Aceitar tutela, curatela ou outro munus público.
VI – Litigar em juízo civil ou comercial, a não ser nos casos indicados no arts. 248 e 251.
VII – Exercer a profissão (art. 233, IV)
VIII – contrair obrigações, que possam importar em alheação de bens do casal.
Art. 243. A autorização do marido pode ser geral ou especial, mas deve constar de instrumento público ou particular previamente autenticado.
A mulher de classe média vivia a vida sempre “tutelada”: quando novas, pelo pai; quando adultas (ou adolescentes ainda), pelo marido. Seu destino já era certo, elas eram educadas desde de crianças para se tornarem esposas castas, mães e donas de casa. Verdadeiras propriedades dos maridos, desprovidas de qualquer capacidade, até mesmo para deixar casamentos ruins e humilhantes.
Só pudemos divorciar em 1977, com a Lei n° 6.515, que tentou estabelecer, de forma mais justa, as obrigações posteriores ao divórcio, entre ambos os cônjuges. Antes disso, em 1962, com o Estatuto da Mulher Casada (LEI Nº 4.121, DE 27 DE AGOSTO DE 1962), houve a alteração de alguns artigos da CC-1916, o que afastou parcialmente a incapacidade civil da mulher casada.
O que eu queria explorar é uma possível ligação entre essa ideia, pelo homem, de posse literal da sua esposa, que concederia o direito a tudo sobre ela, inclusive o de estuprar (bom, visto pela ótica do estuprador, se esse direito existe, ele não estupra). Ademais, essa ideia de objetificação feminina junto à posse sobre o seu corpo é o que leva o Brasil a ser o 5º país que mais mata mulheres no mundo. O feminicídio é um instrumento legitimado a muitos homens, que creem mesmo em ter o direito de tirar a vida daquilo que considera SEU. Com relação ao estupro, tema do texto, a cada 11 minutos, uma brasileira é estuprada, e eu não me canso de repetir: não é pelo louco maníaco da rua escura, e sim, por aquele que diz que a ama, que cuida dela, que quer o seu bem. Ele foi e é legitimado a agir dessa forma, inclusive, pelos meios legais. Atualmente, nós fazemos vista grossa – acho que, muitas vezes, nós não queremos acreditar, afinal, ele não pode ser um monstro, ele é seu namorado/noivo/marido e “te ama”.
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Quem ama não estupra. Sexo só é sexo se for consentido. Você disse não e ele insistiu; você estava alcoolizada e ele foi para o seu quarto; ele disse que é seu namorado, e por isso não há problema; ele te estuprou.
O amor não mata; o ódio sim.
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Referências
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. São Paulo: RT, 2006.
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