Foto: E se for um alien??
Existem dois mundos que eu considero bastante sombrios, mas de formas e em intensidades diferentes: o Acadêmico e o das Redes Sociais.
O mundo acadêmico é imenso, é rico, é denso e, muitas vezes, me dá medo. Só que é um medo inicial, porque, logo que ele passa, vem uma imensidão de possibilidades, de reflexões, de aprendizados. A gente se sente mínima, pois há tanto ainda que aprender, tanto a descobrir, tanto a ler, a escrever, às vezes acertar, muitas vezes errar.
O mundo das Redes Sociais me assusta muito, pois ele não me é tangível. Nele, eu não me sinto confortável. Não possuo domínio sobre a sua linguagem, nem manejo para alimentá-lo, diariamente, com as minhas ideias. Só que foi nesse mundo que eu descobri o feminismo. Ele foi a porta de entrada para o acadêmico! Por isso, eu penso, talvez esses dois mundos estejam mais próximos do que eu imaginava.
Só que existem coisas que não são transponíveis do mundo acadêmico para o da rede social. Não dá para usar a mesma linguagem, nem a mesma formalidade. No acadêmico, a gente cria conceitos, inova, faz com que a ciência evolua. E há uma enorme exigência de leituras prévias, críticas e criativas, para que esses novos conceitos possam se concretizar.
O problema do mundo da rede social é que, por vezes, criam-se conceitos com fundamentos em ideologias rasas, sem autocrítica, sem embasamento. Jargões, chavões e definições simples, para problemas complexos, são facilmente distribuídas em grupos de WhatsApp e em páginas de Facebook. Não se sabe mais o que é mentira ou o que é verdade, e as contestações são feitas com base em meras crenças individuais que, não raro, tornam-se rapidamente coletivas.
Tudo isso para dizer que, há muito tempo, antes de dormir, eu fico me questionando: “o que eles querem dizer com ‘Ideologia de Gênero’? Isso não existe na Academia! Como eu posso contestar algo que traz consigo um vácuo conceitual”?
Bom, conversando com uma amiga, ela me disse que, na verdade, éramos nós, feministas, e estudantes da área de gênero e reconhecimento, que deveríamos nos apropriar desse tal conceito. Afinal, nossos estudos contestam exatamente o estabelecimento de diferenças entre homens e mulheres com base nos sexos, e são essas diferenças que conformam e criam o gênero.
Assim, quando a gente diz que menino deve usar roupa azul e menina roupa rosa, estabelecemos que há demarcações que separam e colocam em mundos diferentes, dicotômicos e opostos, os meninos e as meninas, só porque seus órgãos genitais são diferentes.
O problema de tudo isso é que tais diferenças são também muitos inferiorizantes em relação às mulheres, com hierarquias e assimetrias de poder entre os gêneros. As características de gênero, que foram escolhidas para nós, muito antes de nascermos, colocam-nos em patamares bem piores que os homens. Nós carregamos os estereótipos de submissão, fraqueza, subserviência, incapacidade, naturalmente maternal, naturalmente “feminina”, naturalmente apta à realização do trabalho reprodutivo. Somos também as culpadas por todo o pecado do mundo, pelas maldades que acometem a população, pois, ao mesmo tempo em que somos dóceis, inocentes e indefesas, somos também putas, víboras, malévolas, bruxas.
O que é gênero?
Os estudos de gênero se iniciaram a partir da década de 1970, durante a 2ª onda do movimento feminista, e se diversificaram, principalmente, a partir dos anos 1990, com as novas abordagens realizadas por Judith Butler. Portanto, é um conceito relativamente novo, e está sujeito à utilização inadequada, como acontece aqui no Brasil, com essa tal “Ideologia de Gênero”.
O conceito “desigualdade de gênero”, muito utilizado na academia e pelas grandes Agências Internacionais, como a ONU, e a busca pela equidade de gênero, chamam a atenção para as condições de vulnerabilidade que as mulheres se encontram, em todo mundo. As mulheres são apontadas como aquelas que possuem menores rendas, devido à divisão sexual do trabalho, menos anos de estudos, muitas vezes devido a casamentos e a gravidezes, que impedem a mulher de terminar seus estudos, piores empregos (com pouco prestígio e desvalorizados), além de estarem sujeitas a diversas violências por serem, simplesmente, mulheres, como assédios, estupros, casamentos forçados, violência obstétrica, violência doméstica, tais como a psicológica, a econômica e a física. Nós também sofremos desigualdades e opressões no que tange ao acesso à plenitude dos direitos civis e, em linguagem comum, somos ainda vistas como objetos de posse, incapazes, inferiores.
Junte tudo isso às desigualdades raciais: no Brasil, as mulheres negras ficam na base da pirâmide social, com os menores salários auferidos, com pouca escolaridade, o maior índice de violência doméstica, e as principais nas estatísticas de feminicídio.
Uma das frases mais conhecidas nos estudos feministas é a da Filósofa Simone de Beauvoir, quando ela diz, no seu livro “O Segundo Sexo, v.II”, que “Não se nasce mulher, torna-se uma”. Judith Butler, em 1990, ainda acrescenta que nem mesmo o sexo poderia ser um dado natural e, assim, essa pessoa que Beauvoir cita em sua famosa frase poderia não ser, necessariamente, uma fêmea.[1] Aqui, podemos fazer alusão às pessoas transgêneras e transexuais.
Por isso, seria exatamente a partir dessa “Ideologia de Gênero” que foram definidos os papeis e os lugares sociais de forma muito distinta para homens e mulheres, e que nos fizeram contestar, ao longo da história, o porquê de nunca sermos vistas como sujeitas de direitos e de deveres, inclusive, quando dizíamos estar tão avançados no que tangia aos direitos individuais e coletivos.

Nós é que sofremos com as amarras da “Ideologia de Gênero” e nós é que deveríamos estar sempre muito revoltadas com ela. Mas por que são eles, os “conservadores”, “pela família”, “do bem”, que ficam tão aborrecidos? Por que eles bradam que nas escolas não se deve ensinar “Ideologia de Gênero”, se nem mesmo se ensinam sobre os movimentos feministas e de emancipação feminina? Eu só fui ter noção da minha condição inferior imposta pela sociedade patriarcal quando tinha já meus 20 e poucos anos…
Pois então, eu chamo isso de inversão de discurso. E imagino que essa grande revolta acontece porque, a partir da nossa conscientização e do nosso empoderamento coletivo, tornamo-nos capazes de recusar a obedecer e a agir como as características de gênero nos mandam. Da mesma forma em que uma menina passa a não querer vestir só rosa e ficar brincando com o ferro de passar roupa, o seu amiguinho quer, sim, poder chorar quando alguém o magoou, quer respeitar suas amiguinhas e não vai querer ser visto como “garanhão” quando crescer, como se isso fosse motivo de orgulho. A masculinidade e a virilidade são muito prejudiciais à formação psicossocial dos homens, mas como o patriarcado as colocam como “superiores”, elas são ainda menos contestadas.
Agora, entraremos na questão da sexualidade, o que eu creio ser aquilo mais assusta a pessoa “do bem”, já que, ser do bem é não aceitar “filho gay”…
A “Ideologia de Gênero” impõe que homem deve gostar de mulher e que mulher deve gostar de homem. Que só esse tipo de relacionamento/casamento é o correto, ou seja, impõe a heteronormatividade.
Quero dizer, antes fosse só isso né… Homem tem que gostar de mulher submissa, dócil, resignada, do lar, casta. E mulher tem que gostar do machão, do provedor, do que trai, mas ama, do que bate, mas dá flores.
Para os adeptos à “Ideologia de Gênero”, não há outra possibilidade, pois eles naturalizam as diferenças com base no sexo biológico, ainda que não vejam, com a naturalidade requerida, toda forma de amar. Por isso, quando uma mulher não se identifica com a feminilidade imposta e construída socialmente para o gênero feminino, incluindo não se relacionar com homens, ela é errada, transgressora, subversiva! E o homem, quando não se identifica com a masculinidade e a virilidade do gênero construído, que perpassa a agressividade e a intolerância, incluindo não se relacionar com mulheres, ele é digno de morte.
Deveríamos ser o grupo contra a “Ideologia de Gênero”, mas nós é que somos acusadxs de propagá-la. Isso quer dizer que, quando dizemos que somos livres para sermos quem quisermos, relacionarmo-nos com quem amamos, vestir as roupas que mais gostamos, compradas não importa em qual seção da loja, enfim, afastarmo-nos das imposições categóricas atreladas ao gênero, estaríamos propagando qual ideologia, afinal? Será que não estaríamos, na verdade, há tantos e tantos anos tentando mitigar essa “Ideologia”?
Concluo dizendo que foi um alívio poder desabafar sobre mais essa inversão de discurso e de valores, e que, apesar de parecer absurdamente absurda, é foco de lobby no Congresso Nacional, junto às diretrizes curriculares, é algo usado por quem vocifera sobre “Escola sem Partido”, é um insumo para a lavagem cerebral e uma fonte de extremismo e fundamentalismo, que não mais ficarão só no mundo virtual das Redes Sociais.
Fontes
(Estou me sentindo livre para escrevê-las fora do padrão ABNT!)
Muitas coisas que li ao longo dos anos
Textos excelentes na Web, tais como:
http://www.justificando.com/2017/11/21/desideologizar-ideologia-de-genero/
O Livro de Referência da Butler é o “Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade”, que ainda preciso terminar de ler.
GÊNERO: O que é e o não ideologia GÊNERO. Profa. Dra. Maria Eulina Profa. NIPAM/Centro de Educação/UFPB.
Butler e a desconstrução do gênero. Carla Rodrigues. Estudos Feministas, Florianópolis, 13(1): 216, janeiro-abril/2005
[1] Rodrigues, 2005.