Foto: Raça dos Cachorros

“Eu voto no Bolsonaro porque ele é o único que se preocupa com as mulheres, ele tem um projeto de castrar estupradores, e é disso que precisamos”.

Li algo parecido com essa frase em alguma matéria que abordava o grupo de mulheres que apoiavam Jair Bolsonaro. Porém, também escutei de pessoas próximas que a castração química seria a melhor solução para o crime do estupro, já que o homem não iria estuprar mais nenhuma mulher e ainda seria impossibilitado de sentir qualquer prazer sexual.

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Pois tentarei, de uma maneira breve e didática, desconstruir essa ideia, em tópicos

  1. O estupro é muito mais uma dominação simbólica do que, propriamente, física.

Quando um homem estupra uma mulher, uma criança, ou mesmo outro homem, ele, na maioria das vezes, não o faz para saciar um desejo sexual incontrolável. Ele está, na verdade, buscando uma forma de estabelecer uma relação de domínio, superioridade, poder e força em relação a/ao outra/o indivíduo e vê, na relação sexual não consentida, uma maneira de reafirmar essa relação de superioridade e inferioridade. Existe, portanto, uma relação simbólica de dominação que antecede a introdução do pênis (no outro ponto, mostraremos que estupro não é cometido só com o pênis), que perpassa justamente a tentativa de inferiorização e subordinação do outro.

Assim, como muitos machistas e misóginos ululam discursos contra o conceito criado e denominado “ideologia de gênero”, não conseguem enxergar tal fator chave que leva ao crime do estupro e o qual conforma o que chamamos de “cultura do estupro” – explicarei posteriormente também.

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Como sempre, oferecem soluções no campo da punição do sujeito mau, do outro – o estuprador – sendo que este sujeito está muito mais perto do que pensamos.

  1. O crime de estupro é cometido, majoritariamente, por pessoas próximas às vítimas

Quando alguém brada pela castração química, essa pessoa tem em mente aquele padrão típico de estuprador: tarado, louco, que estava no beco, à noite, aguardando uma vítima para atacar! Ou será que ela bradaria pela castração do seu próprio avô, que estuprou a sua prima? Do seu próprio pai, que estuprou a sua irmã? Do marido da sua melhor amiga, que a estuprou? Porque, eu sei, a realidade é dura, mas estes são os casos mais comuns de estupro. A história do beco é, na verdade, uma minoria, diante dos inúmeros casos que acontecem dentro das próprias casas das vítimas.

O que essas pessoas, defensoras da punição, não refletem é que é exatamente o tal “cidadão de bem”, (que deveria ter uma arma para se defender dos maus) quem mais estupra. E não é contraditório? O cidadão de bem tem que se defender do bandido mau, mas ele deverá ser punido com castração química, porque também é criminoso. Se ele é criminoso, ele também é mau. Então, ele não deveria ser categorizado como do bem! Confundiu a cabeça, né… Por isso, é melhor pensar que quem estupra é o cara mau do beco à noite, e ele deve ser punido! Só que a realidade não é essa.

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A partir daí, vemos o quanto a tática de guerra de dividir as pessoas na dicotomia do bem X o mal, da criação do inimigo que deve ser exterminado, não funciona no mundo real. Existe uma linha muito tênue que separa essa categoria, e, no caso do estupro, o cidadão de bem é o maior criminoso. Esse discurso, de castrar o estuprador, seria mesmo levado a sério em mundo que não seja o das fakes news e das análises dicotômicas neofascistas?

  1. O crime de estupro não precisa ser cometido, necessariamente, por meio da penetração do pênis na vagina

A castração química é uma punição que se realizaria partir da administração de remédio que diminui a libido do homem e impede a sua ereção. Isso é algo temporário, só ocorre enquanto o remédio é administrado.

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Haa, te peguei! Você achou que castração química era decepar o pinto!!

Acontece que, para que se configure crime de estupro, não precisa haver, necessariamente, a penetração do pênis na vagina ou no ânus. O estuprador pode usar as suas mãos para acariciar as partes íntima de uma mulher – isso é estupro. Pode utilizar objetos para realizar a penetração – isso é estupro. Pode forçar a mulher a fazer algum ato sexual nele – isso é estupro. Pode encostar ou relar o seu órgão sexual na mulher – isso é estupro. Tudo isso feito também na criança e na adolescente – é estupro.

O Código Penal expandiu, em 2009, o conceito do crime de estupro. Vamos checar?

Art. 213.  Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso (Grifo Nosso)

Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos

  • 1o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos

  • 2o Se da conduta resulta morte

Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos                    

Por isso, a castração química surge como uma punição que, além de ignorar toda a relação de poder simbólica anterior ao ato, também só consegue enxergar uma forma de cometimento do crime, entre inúmeras.

O estuprador, portanto, mesmo castrado, poderá continuar a cometer o crime, se quiser. Emblemático.

  1. O estupro é uma das facetas resultantes da cultura machista, misógina e patriarcal na qual vivemos.

Não coincidentemente, as pessoas que defendem a tal castração química ignoram ou negam, com veemência, a cultura do estupro.

Ao forjar a punição severa da castração como solução, além de ser materialmente ineficiente, coloca-se o estupro como um crime comum, cometido por alguém que tem propensões de ser mau, em uma sociedade que nega as desigualdades estruturais de gênero.

O foco inicial de combate ao estupro deve ser focado em políticas de mitigação das desigualdades de gênero, que pressupõem as relações de dominação/subordinação e de superioridade/inferioridade, o que conforma, precisamente, o objetivo maior desse crime: a reafirmação das relações de dominação.

A misoginia é, também, uma grande responsável pela vitimização das mulheres nesse tipo de crime, desde que reduz seus corpos a objetos de posse, nos quais o homem tem direito a tudo, inclusive, ao sexo sem consentimento e à moléstia.

Deve-se sempre educar as pessoas sobre a questão do consentimento – qualquer relação sexual, sem consentimento, configura-se como estupro. Se a mulher estiver alcoolizada e não for capaz de dizer não, isso é estupro; se a mulher estava vestindo uma roupa curta, deve-se, ainda, no século XXI, lembrar que isso não significa que ela está legitimada a ser estuprada ou assediada.

Os corpos das mulheres não devem ser vistos como objetos sujeitos à disponibilidade, à acessibilidade e à possessividade pelos homens. Da mesma forma, uma categorização das mulheres também valida o crime de estupro: a sociedade reacionária se revolta quando uma “mulher de família” é estuprada, mas não se enfurece e, ao contrário, culpabiliza a vítima, se ela não for “direita”, ou se estava usando a tal roupa curta demais.

Isso tudo que acabei de escrever, de forma breve, chama-se cultura do estupro, e é besteira continuar a ignorar a sua existência. Ela existe e conforma a sociedade (a qual sempre defino, em todos os meus textos de que envolvem violência contra a mulher e desigualdade de gênero) patriarcal, machista e misógina em que vivemos. Essa é a chave para entender o crime do estupro e, também, para buscar resoluções.

Mas então você acha que o estuprador deve ficar impune?

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Não, não deve. Porém, antes de querer reduzir o estuprador a um homem louco, mau e psicopata, devemos nos conscientizar de que o homem de família, provedor, “do bem” e que brada pela “castração química” pode ser o próprio criminoso. E ele o é, pois está inserido nessa sociedade e atua da forma como se espera: o pensamento de que detém a posse sobre o corpo da mulher torna-o estuprador.

Encerro o texto com uma pergunta e com um desenho, para melhor exemplificar o que escrevi.

Agora, você, homem do bem, ainda quer mesmo defender essa ideia punitivista, e que ignora toda a problemática estrutural que antecede o crime do estupro?

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