Foto: A soma de todos os afetos
A GUINADA À EXTREMA DIREITA NÃO ME ASSUSTA MAIS
Desde 2015, eu venho acompanhando e militando diuturnamente na política. Eu sempre fui de esquerda, o que quer que isso significasse quando eu ainda era adolescente. Eu apertava o 13 nas urnas com os meus pais, e isso era a minha maior alegria.
As pessoas sempre me disseram que eu tenho um coração bom. Mas eu nunca me considerei melhor do que ninguém, só porque sempre me preocupei com quem não tinha uma vida tão boa quanto a minha.
Eu via tias e tios dando cestas básicas pra galera do morro, no Natal. Eles se sentiam tão bem, como se estivessem garantindo um lugar no céu. Isso era ser bom! E o resto do ano, eu pensava? Não seria melhor se todas as pessoas pudessem comprar esses alimentos, sempre que precisassem? Por que nem todo mundo pode morar numa casa legal, comer bem todos os dias, estudar numa escola tão bonitinha quanto a minha?
Eu venho de uma família miscigenada. Da parte de mãe, minha família é libanesa. Da parte de pai, meu avô era negro, minha avó, indígena. Só que racismo nunca foi algo discutido nessa família, que, inclusive, tem membros racistas. E eu pensava, nos anos 90: por que todo menino que vende balinha no sinal é negro? Por que as empregadas da minha avó são todas negras? Por que eu vejo pessoas da minha própria família falando que “preto não é confiável?”. Por que eu sempre quis embranquecer, sempre odiei o meu cabelo cacheado?
Eu cresci na época em que o PT governava o país. Foi a primeira vez que meus pais puderam conhecer o exterior. Nós fomos à Argentina. Meu pai trocou o carro, os eletrodomésticos ficaram mais modernos. Minha mãe adorou, já que sempre teve dupla jornada. Eu estudei no melhor colégio da cidade, o meu pai conseguia pagar. Estava todo mundo feliz, o desemprego era baixo. Entrei na universidade já na época das cotas. Dei uma entrevista, aos 17 anos, dizendo que a cota era uma medida paliativa, que tinha que melhorar a educação de base, mas enquanto isso não fosse possível, era uma forma de possibilitar a entrada de pessoas com menos condições na Federal (nem pensei em raça, pensei em classe, mas essas duas coisas são muito atreladas aqui no BR).
Em suma, estava tudo muito bom até… 2013. A direita redescobriu as ruas, como na década de 60, que antecedeu o golpe Militar? De repente, o PT virou mesmo um inimigo? Estava tudo tão bom, por que isso agora? 2014 foi o sinal: “faremos a pior oposição que já existiu na história desse país”. O Judiciário, o 4° poder (a mídia), todos criaram um grande inimigo interno: o PT. “O PT criou a corrupção, o petrolão”. “O PT é uma quadrilha”; “Fora PT”, havia cartazes na paulista. Mas havia também coisas do tipo “Por que não mataram todos em 64?”. Esse me fez refletir muito desde então. Era o fascismo voltando, as ideias sendo incrustadas nos alienados políticos, mas também em pessoas que estudaram comigo, em uma universidade pública. Conversei com meu namorado da época, que era também de esquerda, sobre até onde tudo isso iria parar? Estão falando de intervenção militar, de matança, de resolver os supostos problemas na base da violência. E ele me dizia, Luíza, isso é só o começo. A gente tem que se preparar. Parece ridículo, mas é a realidade. É a reacionaria em ação.
Era a figura do reacionário, então, que entraria em cena. Vídeos no youtube, páginas e mais páginas no Facebook, correntes no whatsapp, quanto mais fake, melhor. “Isso vai definir a política a partir de agora”.
A classe média se voltou contra o PT, voltou-se contra quem fez com que ela ascendesse socialmente. As pessoas que estudaram História não sabem o que foi a ditadura? Que o cidadão de bem poderia se tornar do mal, quando eles bem quisessem, se tivesse o mesmo sobrenome do outro comunista procurado? Ou se tivesse, simplesmente, cara de comunista? A velhinha que segurava o tal cartaz poderia sim ter sido morta. Mas por que ela acha que estava isenta?
O GOLPE DE 2016
O golpe de 2016, para mim, foi o recalque do resultado das eleições. A direita não se conformou, porque deu PT de novo. Eu não dormia direito nessa época, eu me tornei uma pessoa mais amarga. Ao mesmo tempo, eu pensava, o PSDB está cavando a sua própria cova, apoiando o golpe. Eles querem voltar em 2018, custava ter esperado? Mas eles não vão conseguir voltar, estão muito fracos. Eu tenho medo do pior: não vai ter eleição? Serão adiadas? Porque a direita, essa direita aí, não ganha mais.
E o Bolsonaro? Tinham vários moleques com fotinha escrito “Bolsonaro 2018” derrubando páginas feministas no Facebook. Uma campanha havia, sim, começado, mas era muito utópica, muito virtual, odiosa demais para conquistar setores mais estudados da classe média né! Isso não é uma ameaça real à nossa democracia rastejante, pensava eu, ingênua, como sempre fui.
Desmonte de direitos, compra de deputados, aceno a banqueiros, contrarreforma trabalhista, contrarreforma da previdência, desinvestimento em saúde e em educação. Governo de homens velhos, brancos e endinheirados, eu dizia. O resquício da elite política, os “raposas velhas”. Só que esses, eles também não querem mais, os cidadãos de bem. O que será que vai vir em 2018?
Outra eleição marcada por fake News de Bolsonaro, MBL, Mamãe Falei… ou esses serão os que querem se passar por outsiders, mas que são a cara do establishment?
O OUTSIDER QUE ESTÁ HÁ QUASE 30 ANOS NA POLÍTICA
Não, não foi a vez dos empresários, que querem o liberalismo (mas ser conservador nos valores, isso pode, mais do mesmo)… Não foi a vez dos jogadores de futebol. Foi a vez de alguém que se passou por outsider, sendo uma pessoa completamente política. Não só ele é político de carreira, assim como seus filhos todos fizeram carreira na política.
“Nós queremos o novo, chega do que está aí, nem PT, nem PSDB”; “Mas ele não vem de fora, ele é político, há quase 30 anos… (sou interrompida); “Com ele não tem vez, vai todo mundo pra cadeia, ele vai colocar moral nesse país. Que negócio é esse de direitos humanos pra bandido? Direitos humanos para humanos direitos”. É melhor me calar.
Não é assim que vou conseguir desconstruir o pensamento fascistóide, pois eles se fortalecem nisso. São coisas óbvias que devem ser explicadas? Não seja racista… Todo mundo sabe que isso é errado. Mas encontraram alguém que tem aval para falar esse tipo de coisa, em forma de piadinha, com risadinhas, e nada acontece. É isso que eles pensam, sim. É isso que eles querem, sim. Mulher negra empoderada? Mulher negra tem que saber o lugar dela, tem que ser empregada.
Falei com meus pais, não vou perder meu tempo discutindo ideologia com bolsominion… Eles vão ganhar. Um ou dois jargões, os ouvidos estão tapados. Ele vai perder nos debates, porque é despreparado, não entende nada, vai ficar falando de ideologia diante de uma pergunta de macroeconomia?
A facada.
As emoções.
A internação.
Não participou dos debates.
A comoção.
A adoração.
A esquerda não se uniu! Todos me dizem que vão votar no Ciro, mas ele está com 11%, não reflete esse tanto de intenção.
O ódio contra o PT é maior do que ser contra um discurso de ódio. Não vai ter jeito, eu disse para os meus pais.
O NÓS E O ELES
“Bandido bom é bandido morto”
“Ideologia de gênero” (isso me intriga, porque não faz sentido o sentido que tentaram dar pra esse conceito)
“Arma para os cidadãos de bem”
“Não entendo de economia, vou chamar o Posto Ipiranga”
“Mulher ganha menos à tem que ganhar menos porque engravida (em pleno 2018)
“Prefiro filho morto a filho gay”
“Dei uma fraqueja na última, veio uma mulher”
Ao simplificar o discurso, anulam-se as diferenças existentes nos aspectos da raça, do gênero, da classe e da sexualidade. Portanto, ao colocar o bandido como o outro, como o mal, como o “eles”, sem qualquer reflexão sobre quem assume aquela posição, legitima-se um discurso genocida, de genocídio negro, que é o que já acontece nesse país.
Quem é o cidadão de bem? Eles têm coragem de pintar a imagem? De admitir que é o homem branco, de classe média e alta, que é cis gênero, que é ou tenta ser o provedor e acha que a sua esposa tem que assumir, feliz, o papel de submissão e de inferioridade no relacionamento? Ou, pior: será que eles acham que esse é o sujeito neutro, universal, padrão? É isso que mais me preocupa. E foi isso que despertou, em mim, a vontade de estudar desigualdade de gênero e reconhecimento. O problema desse sujeito neutro, que esse tipo de discurso mantém, é que ele é a causa de todas as desigualdades que temos de lutar todos os dias para mitigá-las.
Colocar as diferenças de sexo como suficientes para que existam as assimetrias de gênero, e mais, proibir qualquer ensinamento sobre desigualdade de gênero, legitima a resignação diante de diferenças salariais entre homens e mulheres, diferenças no tipo de trabalho exercido, a ausência de divisão igualitária de tarefas domésticas e perpetua-se a violência contra a mulher, já que a disparidade de poder entre os gêneros torna a mulher um objeto de posse na visão do machista.
A criação de um inimigo comum, que se encontra na esquerda política, e se materializa no Partido dos Trabalhadores, culminou em uma guinada generalizada à extrema direita. Eu acredito que muitas pessoas não saibam nem o porquê votam em pessoas com propostas que vão contra a sua própria classe, o seu próprio eu e também o seu lugar social.
Inventa-se que existe uma ameaça de se instalar o comunismo no Brasil, da mesma forma como era na década de 1960, sendo que, ao contrário e mais uma vez, é o autoritarismo, a arbitrariedade, a barbárie, que está prestes a ser vista no Executivo Federal. Foram 14 anos de PT no poder, um governo de cunho neoliberal, que incluiu um pouquinho os pobres no orçamento, como diz minha mãe. Não houve abolição da propriedade privada, não houve estatização de empresas, não houve qualquer tipo de reestruturação do Estado. Os ricos continuaram muito ricos ou ficaram mais ricos! Mas eu sei o que aconteceu…
TUDO É UMA QUESTÃO DE PRIVILÉGIOS E DE ÓDIO DE CLASSES.
A classe média do Brasil é suicida. Ela clama pela perda de direitos. Mas é melhor ela perder um pouquinho do que o pobre começar a tê-los.
A classe média tem pavor de perder os seus privilégios, que não giram em torno apenas do dinheiro, mas também do capital cultural e do capital social. Então, foi no governo do PT que a filha da emprega entrou pra universidade federal, o porteiro comprou o carro e a classe C e D passaram a dominar os aeroportos. Isso é mais do que suficiente para a classe média tradicional sentir medo, medo de perder o posto de nem tão financeiramente rica, mas culturalmente plena, e com o monopólio sobre isso.
Eu, sinceramente, não acho que essas pessoas realmente acreditam que o “comunismo será implementado pelo PT”, que, em quase 14 anos lá, não implantou o comunismo, olha só.
Outro problema é que a classe que ascendeu durante os governos do PT não reconhece que foi por meio de políticas afirmativas, de inclusão social, que eles chegaram aonde puderam chegar. Pelo contrário, adotaram o discurso senso comum da meritocracia, e o mencionado partido também falhou em deixar claro que só com esse tipo de política, em uma sociedade tão estratificada como a nossa, é que tal ascensão foi possível. E, se isso é mérito, o é de quem estava a frente do poder sim, doa a quem doer.
DISCURSOS VIRAIS DE UM MEME SÓ
As respostas fáceis, prontas, de uma linha, que cabem em um meme, seduzem, porque elas oferecem a permanência em uma zona de conforto que nos faz dormir tranquilamente, achando que tudo que temos é porque “fizemos por merecer”, e que as soluções estão em medidas bárbaras, que são justificáveis, já que a situação atual prejudica a pessoa do bem, que é pra quem esse tipo de discurso é sempre dirigido.
Se eu nunca estivesse estudado sobre violência e criminalidade, eu acharia, de cara, que, quanto menos armas de fogo circulando, menores seriam as taxas de homicídio, e aí, o número de assassinatos diminuiriam, o que diminuiria, também, o índice de violência por arma de fogo.
Na 4ª série do ensino fundamental, eu fiz uma redação com o tema de que “violência gera violência”, então, combater violência com mais violência cria um círculo vicioso, que não dá trégua, não após tantas pessoas morrerem. É a lógica da guerra. É a guerra que a gente já vê entre polícia, milícias, traficantes. Mas é armando o cara branco, rico ou com projeções de ser rico, cis, que a gente combaterá essa violência? Por quê? Porque esse discurso é tão fascinante, se ele não faz qualquer sentido?
Creio que seja por conta de uma reafirmação de valores que perpassa a masculinidade e a virilidade. Ah, vem um bandido roubar o meu iPhone, que estou pagando com o fruto do meu trabalho. Mais fácil do que pensar sobre o porquê de existir esse tipo de coisa aqui no BR, o que a pessoa vai fazer, na verdade, com o dinheiro que vai ganhar depois que vender o aparelho, por que são as pessoas negras, as mais pobres, que estão inseridas no crime e, um menor acesso a armas não significaria menos crimes violentos… É acreditar que, tendo uma arma também, isso não vai mais acontecer, pois o cidadão de bem vai matar o bandido antes que ele conclua o assalto do iPhone! E o problema da segurança pública está resolvido.
O DESPREPARO
O despreparo em todos os assuntos que um presidenciável deve se preocupar, e deve saber responder, sem qualquer tipo de delegação a terceiros, já seria suficiente para que tudo isso fosse uma piada. Para que eu continuasse a rir das pessoas da classe de onde venho, que ficaram tristes porque agora tem que pagar direitos trabalhistas às empregadas domésticas.
Só que, quase 50% de votos já no primeiro turno ultrapassam os 20%, que é o número de pessoas que conformam a classe média brasileira.
Esse discurso que abraça ideias fascistas, essa imagem criada de um salvador da pátria, de um outsider (que nunca vi, faz mais do que parte do establishment), esse culto ao passado e à tradição, e o medo de uma ameaça completamente irreal, também conquistou a classe mais pobre. Como vimos nas pesquisas de intenção de votos, também seduziu mulheres.
E não é só para o cargo máximo do Executivo: o Legislativo, tanto o federal, quanto os estaduais, já estão repletos de pessoas que pensam assim. Nada mais do que o reflexo do que querem e do que pensam aqui. Não ficou só no mundo virtual, como eu pensava. Não foram só robôs ou haters machistinhos de 17 anos que fizeram campanha. Não foram um ou dois “neozistas a la brasileira” que propagaram o tal discurso memeficado. Foi o seu pai, o seu então herói; o seu avô, que viveu bem a ditadura militar; foi o seu namorado, o então amor da sua vida; foi o seu chefe, ah, inclusive, se ele pudesse, colocaria um cabresto em você; foi a sua cunhada, tão amorosa, tão legal; foi a sua amiga da igreja, que é a líder de uma ação de caridade; foi o trabalhador que, sem o salário no fim do mês, não tem como sobreviver; foi seu colega de faculdade, que conheceu a Europa inteira por meio do programa Ciência Sem Fronteiras, de Dilma Rousseff; foi seu colega de trabalho, servidor público, que gosta da parte do “estado mínimo”; foi a sua amiga que já esteve em um relacionamento abusivo, mas acha esse papo de feminismo muito chato.
Foi sim, uma nação inteira. É pra lá que todas e todos nós vamos, a democracia é assim. A nossa democracia, que já rasteja, pode estar, finalmente, à beira do precipício. Será que vamos, mais uma vez, pagar para ver?
Será que a classe média, ou mesmo a elite, acham que o Coiso está sob controle, assim como achou a elite alemã em relação a Hitler?
Assim como acharam os golpistas civis de 64 com relação aos militares?
Nesse jogo de poder político, subestimar o que parece louco, irracional, é desconsiderar o fato de que, se ele sabe que se fortaleceu com esse tipo de discurso, por que não o levaria às suas consequências práticas? O que irá impedi-lo, depois que ele se tornou um grande líder populista de extrema direita?
Até a mídia, historicamente golpista, assistirá, boquiaberta, às atrocidades do monstrinho que ela própria ajudou a criar.
Ainda temos tempo de impedir que isso aconteça.
Há tempo
É tempo.
Não deixe que silenciem nossas lutas! Não se permita sentir incapaz de lutar com suas próprias forças, o que é a beleza da democracia. Nós não precisamos de herói para nos salvar, o caminho pode ser traçado e trilhado por nós mesmxs. Não desperdice a chance de retomarmos o sonho da inclusão social e o desenvolvimento deste país.
Permita-se, e não permita que a barbárie vença por aqui.