Foto: Andressa Cunha (todos os direitos reservados)

A família nuclear é uma concepção burguesa que se tornou o padrão a ser buscado nos arranjos familiares de diversas classes sociais.

Esse tipo de família pressupõe a união entre duas pessoas de sexos opostos, cis gêneros, que possuem laços afetivos e que cumprem, no casamento, o objetivo da procriação. Nesse tipo de arranjo, existe um sistema de hierarquias e autoridades: a figura paterna é central, é este o chefe do núcleo familiar, que estabelece as regras, possui direitos sobre a esposa e os filhos e é, também, o provedor financeiro e material do lar.

A família nuclear burguesa atual tem, geralmente, um número menor de membros, com o ideal de uns dois filhos. Porém, em algumas regiões do Brasil Colonial, por exemplo, tivemos a concepção da família patriarcal na qual, sob o domínio do patriarca, havia, além dos descendentes consanguíneos, os escravos, outros parentes, outros tipos de empregados e uma grande rede de relações sociais e econômicas que giravam em torno de sua figura.

Em uma perspectiva de gênero, o patriarca tinha a posse dos corpos de suas escravas, as quais eram estupradas diuturnamente por esses senhores. Sobre a sua esposa, a posse se materializava no contrato de casamento, o qual muitas vezes era “arranjado”, sob a égide de interesses monetários e direitos de herança.

Principalmente a partir do século XX, a família nuclear passa a ser encarada como natural, como a realidade a ser atingida, também pela moralidade cristã. A heteronormatividade, o casamento consumado pelos sentimentos afetivos, o afastamento do “sexo pecaminoso”, a castidade e a fidelidade da esposa, o controle moral sobre os filhos, a divisão entre trabalho reprodutivo e produtivo e a figura central no homem, por este ser o provedor e ter a maior renda do núcleo, compõem o arranjo perseguido não só pelas classes mais altas, mas também, pelas mais pobres.

Entretanto, a realidade é outra e existem inúmeros tipos de arranjos familiares, que não são menos “corretos” e que ocorrem a despeito de a própria mulher buscar pela composição nuclear burguesa.

Para as mulheres mais pobres, casamento, esses de contrato, de festas, vestido branco, é só uma ficção, é só uma coisa de novela. Quando em um arranjo familiar dual, o que existe, é, na verdade, uma coabitação, não é nada formalizado. Aqui no Brasil, existe uma expressão para isso, é “amigar”.

As famílias de chefia feminina são mais de 40% dos arranjos familiares atualmente no Brasil. Dessas, 16,3% são mulheres de chefia monoparental com filhos, e 3% sem filhos. 7,2% de mulheres conformam famílias unipessoais (IPEA, 2015).

A monoparentalidade deve ser estudada com cuidado. Há diferentes motivos para que uma mulher conforme esse arranjo familiar. Aquelas que possuem uma renda maior e fazem parte de classes mais altas, com alta escolaridade e melhores empregos, muitas vezes optam pelo divórcio ou por não se casarem. Nesse caso, geralmente, é uma questão de escolha, de autonomia e de empoderamento, de aquisição de independência e de estilo de vida. Porém, essa não é uma realidade para as mulheres mais pobres e ser chefe de uma família monoparental pode não ter sido uma escolha, nem um desejo.

“Família só com ‘mãe e avó’ é ‘fábrica de elementos desajustados’ para tráfico”

Vamos agora aos argumentos que rebatem tal afirmação do político, de caráter raso e cínico, a qual, a meu ver, teve um intuito de fazer uma crítica pela moralidade e um apelo ao combate à criminalidade (com violência policial, armar os cidadãos de bem, etc) mais do que a problematização de o porquê, então, os filhos das mulheres de chefia monoparental vêm entrando para o mundo do crime.

Mesmo para as famílias mais pobres, nem sempre a monoparentalidade pressupõe uma maior pobreza e uma maior entropia no lar, meu argumento n° 1.

Para a mulher chefe de família, a presença de cônjuge pode ser um empecilho maior para a sua autonomização, pois ela é encarregada e mais cobrada em relação ao cumprimento das tarefas domésticas, o que dificulta sua inserção do mercado de trabalho e diminui, consequentemente, sua renda advinda de um trabalho produtivo.

Além disso, se o cônjuge em nada contribui ou contribui muito pouco na parte financeira, a mulher passa a se desdobrar na dupla jornada, contando com redes de solidariedade para cuidar de suas crianças, já que a divisão de tarefas é inexistente, mesmo que o homem não trabalhe fora.

Assim, o cônjuge pode ser mais um fardo para a mulher pobre chefe de família. E a sua ausência na criação de seus filhos é algo que deve ser extremamente considerado. É uma presença-ausência, mas que, para a moral e os bons costumes, é melhor do que a mulher, sozinha, tocar a sua família e até se emancipar.

Meu argumento n° 2 é o de que a monoparentalidade feminina pode não ter sido o desejo da mulher chefe de família monoparental. Abandonos, sumiços, traições, violências, são os maiores motivos para que a mulher se veja nesse tipo de arranjo. Se ela não contasse com a avó, e outras mulheres, parentes ou não, seria impossível sobreviver e sustentar a sua família. É aí que o Estado se faz escandalosamente ausente. É necessário que haja mais creches, escolas em período integral, escolas de maior qualidade, que não precisam ser pagas. Mas eu não escrevo isso por escrever, eu não demonizo o Estado. Acredito no seu potencial e creio que poderíamos investir muito mais na área da educação e da assistência. A gente DEVE fazer isso!

É muito fácil culpar a mulher porque o seu filho entrou para o mundo do crime, mas por que é tão difícil reconhecer que as ausências do pai e do Estado são tão responsáveis por isso? Quem dá o suporte para essa mulher? Se o pai der uma pensão porque o juiz mandou também é suficiente? Se o pai existe, até compõe um núcleo familiar próximo do ideal burguês, mas não cumpre com os seus deveres de criação e cuidado também é o bastante?

Meu argumento n° 3 é que, mais do que mostrar a responsabilidade de quem se ausentou do núcleo familiar, não se deve culpabilizar quem permaneceu e deve se virar sozinha na criação, no leva e busca da escola, no cozinhar, lavar a louça, a roupa, arrumar a casa, segurar a barra nos momentos difíceis, nas decepções, nas angustias, nos problemas psicológicos, financeiros, no afeto, no carinho, no sentimento, na hora de dormir, de acalmar, de contar histórias, de proteger, de permitir, de incentivar, de um dia, quem sabe, aplaudir?

Da mesma forma, candidaturas que pregam desinvestimento econômico e social, desregulamentação do Estado e uma menor atuação deste não resolverá o problema da marginalização e da exclusão social que podem levar a tais índices de criminalidade, o que passa longe de ser apenas um problema de arranjo familiar que se desfalca da família moral e ideal burguesa.

Meu argumento n° 4, e talvez o último, é que o discurso em prol da “segurança” acaba legitimando ideias rasas, odiosas, extremamente polarizadas, em uma visão de mundo muito limitada, estreita, pouco sensível ou completamente alheia às desigualdades e à estratificação social.

Assim, não é perguntado o porquê de tantos adolescentes dos morros, negros, pobres, entrarem no mundo do crime, não se questiona a ausência de políticas de mitigação da desigualdade e de inclusão social, mas procuram-se explicações que sempre giram em torno do afastamento em que vivem os mais pobres dos ideais da classe média. Nessa frase, a explicação para a criminalidade surge porque os arranjos familiares das famílias mais pobres não correspondem a esse ideário. Que a mãe, sozinha, não é capaz de criar o seu filho do modo certo, moral, e é por isso que ele parte para o crime. Ou que, propositalmente, essas mulheres são as imorais, as que buscam não corresponder aos padrões da moralidade e dos bons costumes. Quando, ao contrário, elas absorvem completamente as ideias burguesas e buscam sim o casamento, mas, por tudo que já lemos até então, isso nem sempre é bom, nem sempre é possível.

Assim, é impossível não concluir com a ressalva de que, sem colocarmos perspectivas de gêneros nesses tipos de afirmações, e quando não levamos em conta as vulnerabilidades sociais pelas quais a mulheres, e mais especificamente, as mulheres negras se encontram, podemos cair nas armadilhas simplistas das “estatísticas” e não resolveremos os problemas pela raiz.

“Foi apenas uma constatação”

Só que o argumento posterior, o da estatística, não me convenceu. Ainda acho que a parte da moralidade foi mais forte, da reafirmação da figura masculina para a sociedade “andar na linha”, para cada um reconhecer o seu lugar e o seu “papel”. E, mais uma vez, houve o menosprezo à mulher negra, pobre, da favela, levantou-se a dúvida sobre a sua capacidade de criar, houve uma culpabilização quando não deveria. Houve também a desumanização de seus filhos e, por fim, a solução truculenta, ainda que implícita nesse discurso, mas tão explícita em tantos outros, como a única forma de combater os “destinos” a que esses “elementos” são levados.