Foto: O Globo

Essa semana, li uma reportagem sobre uma mulher que, após sofrer tentativa de feminicídio, beijou o réu/agressor no tribunal, diante do júri. Ela, que ainda tem as balas alojadas em seu corpo, disse que o ama, que quer passar a vida com ele e que, à parte desse episódio, ele sempre a tratou como uma “rainha”.

É claro que os comentários da reportagem foram bastante odiosos ou irônicos, com os clássicos “mulher gosta de apanhar”, “mulher gosta de homem safado”, e a maioria culpabilizou a vítima por ter tomado essa atitude “excêntrica”. Outros se sensibilizaram e até anteciparam uma morte que, agora, será inevitável. A totalidade das pessoas, no entanto, não compreendeu o verdadeiro motivo que fez com que essa mulher retomasse o relacionamento com o seu agressor. Mas eu posso dizer: isso acontece com muitas vítimas de violência doméstica e a culpa, definitivamente, não é delas.

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Para Narvaz e Koller (2006, p.10), “[…] as mulheres não podem, portanto, ser responsabilizadas pelas violências que sofrem; não sentem prazer com a violência e nem sempre silenciam diante dos abusos sofridos. Não há justificativas para comportamentos abusivos violentos em uma relação conjugal”.

Em uma espécie de brainstorm (ó céus, no que estou me tornando com esses vocabulários de coach??), vou elencar alguns motivos que fazem com que as mulheres permaneçam com ou voltem para os seus agressores:

  1. Dependência econômica, emocional e psicológica;
  2. Ameaças de morte a ela mesma ou a suas crianças, ou de o agressor tirar a própria vida. Ex: “se você se separar de mim, eu te mato, ou mato seu filho”; “se você se separar de mim, eu me mato”; isso contribui para que elas não denunciem os agressores.
  3. Auto culpabilização e incapacidade de se reconhecer como única vítima e de que, realmente, sofreu violência. Ex: “ele me bateu porque eu realmente o irritei muito”; “ele só fez isso porque eu o provoquei”; aqui, há uma dificuldade de reconhecer a violência como atos que vão além da violência nas ruas, já que a violência doméstica acontece no âmbito privado das relações e é multifacetada.
  4. Fase 3 do ciclo da violência doméstica (lua de mel). Ex: o homem faz promessas de que vai mudar, de que será um bom companheiro, que a ama, que vai parar de beber, que vai parar de trair.
  5. Síndrome do príncipe encantado, em que a mulher acredita que é capaz de mudar o homem, que o seu amor irá torná-lo melhor; em casos de traição, a promessa de o agressor não mais trair a vítima é como se fosse seu maior triunfo.
  6. Receio de perder o status de “casada”, o que acontece mais nas classes mais altas e principalmente quando o homem ocupa cargos altos em empresas ou nas carreiras públicas; ou desejo de manter o relacionamento por tudo que “construíram juntos”, sendo o tempo de casamento um dos maiores orgulhos perante a sociedade. Some-se a isso a necessidade, para as mulheres, de se ter a figura paterna na criação dos filhos, o que confirma o desejo de perpetuação da tradicional família nuclear burguesa. Ademais, ressalto que a responsabilidade pela duração ou não de um relacionamento sempre cai à mulher e, por isso, somos pressionadas a mantê-lo, senão, haveríamos falhado na nossa mais importante “missão” nessa vida terrena. Exemplo com frases clássicas: “ela não consegue segurar um homem”; ou “ele traiu porque ela não era boa para ele, teve que procurar fora”.
  7. Baixa autoestima culminada pela submissão e pela subserviência no relacionamento, junto à ideia de que “ninguém vai me amar como ele me ama, ninguém vai querer ficar comigo”. O agressor também faz um jogo psicológico pesado nesse aspecto, quando diz que “ninguém vai te amar como eu te amo” ou pior “só eu mesmo para aguentar uma mulher como você, se você não ficar comigo, vai morrer sozinha, porque nenhum outro homem vai te querer/aguentar”;
  8. Ofensas verbais que fazem com que a mulher se sinta inferior, insegura, envergonhada, sem amor próprio, disponíveis sobre o próprio corpo, que a torna ainda mais dependente psicologicamente do agressor, como xingá-la de feia, gorda, vagabunda, piranha, burra, traste, incapaz…
  9. Afastamento social da vítima, principalmente de familiares e amigas, feito propositalmente pelo agressor, o que faz com que ela não crie uma rede de amparo que a alerte sobre a violência sofrida ou que a ajude a sair do relacionamento abusivo. Assim, ela fica cada vez mais dependente emocionalmente do agressor, e este se coloca como o único a “apoiá-la”, a “entendê-la” e, se ela decidir se afastar, ficará “sozinha no mundo”. Esse isolamento também é usado, pelo agressor, para manipular a vítima psicologicamente e, então, ele se coloca facilmente como vitimizado a todo momento, e ela se sente cada vez mais “culpada” pelos atos violentos do parceiro.
  10. Descrédito recebido no atendimento em uma DEAM*, como quando o policial diz “você tem certeza de que quer denunciá-lo? Ele é o pai da sua filha, é quem bota a comida na mesa”; ou “foi só um arranhãozinho, ele estava bêbado e você, obviamente, deve tê-lo provocado”. Assim, novamente, o agressor é vitimizado, e quem deveria apoiar, primeiramente, a vítima, acaba criando mecanismos para que ela retorne ao relacionamento abusivo.

 

O ciclo da violência doméstica

MPSP
Créditos: MP-SP

É mister ressaltar que a violência doméstica deve ser estudada a partir da perspectiva de que ela é um longo processo, e não um fenômeno. Apesar de o parceiro já mostrar que é violento nos primeiros meses do relacionamento, a violência sempre começa de forma muito sutil e quase imperceptível, tanto para a mulher como para as pessoas do seu ciclo social.

Nesse sentido, Machado e Magalhães (1999) apud Souza e Da Ros (2006, p. 16) nos diz que “[…] as relações devem ser percebidas não só do ponto de vista individual, mas dentro de um contexto social de família, parentesco e afinidade, e de uma teoria das relações de gênero, em um momento histórico culturalmente em configuração”.

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A violência psicológica, que julgo ser a mais perigosa exatamente por suas invisibilidades e sutilezas, pode ser exercida por meses ou anos pelo parceiro, antes que ela culmine na violência física. Nesse ínterim, a mulher já se tornou dependente do homem em vários aspectos, já construiu uma família (nuclear ou não) com ele, já criou laços definitivos quando teve filhos ou deseja permanecer com certo status social e financeiro, principalmente nas classes mais altas.

O ciclo da violência doméstica, ponto chave para entender esse processo propriamente, mostra-nos que é muito difícil para a mulher se desvencilhar do agressor, porque ele não é um monstro a todo momento – na fase 3, ele se torna o homem de seus sonhos, aquele homem que, desde pequenas, ensinaram-nos que seria o ideal, e que fez com que o maior objetivo de nossas vidas fosse fisgá-lo -, o que cria “esperanças”, em sua psique, de que ele perpetuar-se-á em tal personagem.

Podemos pensar que uma mulher que está em um relacionamento abusivo se anula, diariamente, para se manter em uma posição de submissão e resignação, ao ponto de aniquilar completamente o seu “eu individual” e a sua colocação, no mundo social, como sujeita autônoma de desejos, vontades e direitos.

Assim, é muito mais complicado para essa mulher se reconhecer como vítima, principalmente quando, no jogo da violência psicológica, o agressor consegue transferir a culpa a ela, ao se vitimizar. Quando ele consegue atingir o momento da reconciliação na fase 3, não demora para que ambos se encontrem, novamente, na fase 1 – o problema é que o agressor já possui o controle total do relacionamento nesta fase. Viu como é muito difícil para a vítima se desvencilhar desse ciclo?

Após o sentimento de “pena”, “amor”, completude, esperança, alegria, na fase 3, na fase 1, esses sentimentos não são anulados por completo, e outros são adicionados, como o medo, o pavor, a angústia. Nessa fase, é muito difícil que a mulher tome a decisão de afastamento e de separação, por ser muito próxima à “lua de mel”, em que ela fez todo um esforço para manter o relacionamento.

Já na fase 2, emblemática por ser a da violência física ou sexual, a mulher pode se ver, finalmente, em uma posição de vítima e tomar a decisão do afastamento ou da denúncia. Porém, a materialização do afastamento muitas vezes não é possível, pois a fase 3 pode se dar muito próxima ao fim da 2, ou, por vezes, elas acontecem de forma quase concomitante. Viu como a violência doméstica e os relacionamentos abusivos são uma espécie de aprisionamento das mulheres?

Por fim, um dos textos bastante lidos aqui no blog é um em que eu discorro sobre o mito do “amor romântico”. Esse ideal desviante de amor nos faz pensar que situações de violência e picos de paixões são normais em um relacionamento amoroso. Uma ideia muito propagada pelo senso comum, na minha época da adolescência, era que “se um menino me tratasse mal, era porque, na verdade, ele gostava de mim”. Portanto, havia uma naturalização e uma banalização do desrespeito e de maus tratos por parte do homem, já que isso teria, na verdade, um significado positivo. Viu como não é difícil que entremos em relacionamentos abusivos e violentos, já que nos ensinaram que a violência tem significado positivo, e que ela andaria junto à paixão?

Outro ponto abordado por pesquisas como a de Aragão et al (2017) nos mostra que muitas mulheres que sofreram violência doméstica e de gênero vêm de famílias marcadas pela violência, de várias formas: viram suas mães serem agredidas pelo companheiro, foram estupradas pelo pai ou padrasto, apanharam muito quando eram crianças, até pelas próprias mães. Elas cresceram em ambientes em que a violência era intrínseca à convivência familiar, e foi normalizada e instituída nos pilares das convivências mais íntimas. A reprodução dessa violência nos relacionamentos amorosos e a perpetuação dessa mulher como vítima dificulta a sua percepção como tal. Viu como é injusto cobrar que a mulher deixe o seu agressor, quando ela só conviveu, desde muito pequena, com agressores, e nunca lhe mostraram outras maneiras de relacionamentos íntimos?

A dependência econômica ou a necessidade simbólica do “homem da casa”

A dependência econômica é um fator de peso para a manutenção, pela mulher, do relacionamento com o agressor, principalmente quando há filhos envolvidos. Pelas desigualdades históricas de gênero, as quais confinaram as mulheres à esfera privada das relações, e pela construção de papeis de gênero junto da maternidade nata, nós sempre enfrentamos dificuldades para adentramos ao mercado de trabalho. Nossa renda, quando existente, sempre foi tida como “complementar”, e a chefia do lar, na sociedade patriarcal, sempre foi concedida ao homem. Essa subjugação da mulher nas esferas pública e privada foi uma jogada de mestre feita pelos mais intelectuais dos homens, pois nada mais conveniente do que ter, legitimamente, uma escrava doméstica e sexual em uma sociedade de “homens livres”! Ser dependente de alguém é não ter qualquer meio para se libertar das mazelas inerentes a qualquer situação de submissão.

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Entretanto, sabemos que a falácia do patriarcado não se sustentou por muito tempo, e que é praticamente impossível, aos seres comuns e mortais, viver com apenas os proventos do “chefão” da família nuclear. Porém, muitas mulheres que são chefes de família ainda pensam que ter um homem em casa é essencial, pela moralidade que isso representa, pela necessidade na educação das crianças e para a sua dignidade ante a sociedade. A dependência econômica, quando não é propriamente econômica, é simbólica, e faz com que as mulheres permaneçam com seus agressores, sejam estes empregados ou desempregados.

Uma dica: nunca julgue e nem culpabilize uma vítima de violência doméstica; um conselho: ofereça apoio à vítima, da forma que conseguir. Lembre-se sempre do Ligue 180.

Toda vez eu falo que vou escrever menos, máx. 1000 palavras, e já tenho seis páginas de Word!

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Em suma, o que toda vítima de violência doméstica e sexual necessita é de suporte afetivo e profissional. Os laços e os vínculos que ela constrói com seu agressor colocam-na em um labirinto gigante, em que a saída nunca será óbvia, trivial. Uma violência multifacetada como a doméstica, que tem em seu bojo um ciclo de situações que faz com que ela sempre permaneça encalcada na relação, demanda da vítima muita força para encerrar abusos e agressões que muitas vezes se transmutam em feminicídio.

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No caso da mulher que levou cinco tiros do agressor e agora voltará a viver com ele, já que ele responderá pelo crime em liberdade, creio que ela não deveria “ser entregue” ao seu algoz só porque, aparentemente, fez uma escolha deliberada. Por isso, é importante que fortaleçamos grupos de apoio de mulheres, que os serviços psicossociais cheguem até essas vítimas, que a polícia judiciária sempre cumpra seu papel, sem escusas, pois violência doméstica é caso de polícia sim, e que nunca se deixe uma mulher pensar que está sozinha – ela precisa de amparo e não de julgamentos. Não precisamos virar mais estatísticas, e juntas somos sempre mais fortes.

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*Ligue 180*

Fontes

ARAGÃO, Milena; ANDRADE, Claudia Helena Josepetti; SANTOS, Edimar Bezerra.  A mulher vítima de violência e a percepção de si mesma. MM, Sergipe, 2017.

NARVAZ, Martha Giudice; KOLLER, Sílvia Helena. Mulheres vítimas de violência doméstica: Compreendendo subjetividades assujeitadas. PSICO, Porto Alegre, PUCRS, v. 37, n. 1, pp. 7-13, jan./abr. 2006

SOUZA, Patrícia Alves de; DA ROS, Marco Aurélio. Os motivos que mantêm as mulheres vítimas de violência no relacionamento violento. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, EDUFSC, n. 40, p. 509-527, outubro de 2006.

Notícias e artigos em jornais (Último acesso em 31/01/2020).

http://www.gaz.com.br/conteudos/policia/2020/01/29/161106-perdoei_porque_o_amo_diz_vitima_que_beijou_reu_no_tribunal.html.php

https://www.metropoles.com/brasil/antes-de-condenacao-vitima-beija-reu-que-lhe-acertou-5-tiros

https://revistaforum.com.br/noticias/por-que-elas-continuam-com-seus-agressores/