Foto: Tenda de Livros

Nós vivemos em um país muito desigual e que é, ao mesmo tempo, muito conservador. Isso significa que a caminhada rumo a uma sociedade menos estratificada, mais justa e solidária será muito mais longa e árdua por aqui. A atuação das forças de quem está no poder, para manter o status quo, é muito forte e, ao mesmo tempo, espalhada em diversos grupos sociais.

Explico: uma mulher branca possui a demarcação “gênero” como excludente, porém, ela se encontra em vantagem no quesito raça. Então, ela possui uma grande tendência em se identificar e se sentir confortável no grupo opressor. Da mesma forma, um homem negro possui o excludente raça, mas o fator gênero faz com que ele aja de acordo com o grupo dominante, principalmente em relação às suas parceiras e na forma como ele lida com os privilégios de ser homem no âmbito familiar.

Eu penso que os fatores excludentes – classe + gênero + raça + orientação sexual – devem ser sempre analisados em conjunto, pois, a depender do contexto, um pode ser mais definidor do que o outro para a marginalização de certo indivíduo ou de certo grupo.

Na minha dissertação de Mestrado, eu acabei percebendo que o fator raça, no Brasil, é mais agravante à pobreza do que o gênero. Por isso, em nosso país, ser branco ou branca é determinante para pertencer, também, às classes mais altas. Dentro desse grupo, a disparidade salarial entre homens brancos e mulheres brancas é definitiva para demonstrar que ser homem confere vantagens incríveis aos indivíduos no mercado de trabalho e na assunção de profissões com maior prestígio e maiores salários. Isso tudo também é refletido nas relações familiares, nas quais os afazeres domésticos são realizados, de forma muito desigual, entre homens e mulheres, mesmo nas classes mais abastadas (ainda que, em sua maioria, haja a exploração do trabalho doméstico feito pelas mulheres mais pobres).

A Classe

Quando os indivíduos não competem em forma de igualdade, partindo do mesmo ponto, como em uma corrida, por exemplo, é difícil falar em “meritocracia”. Assim, um adolescente que estudou em um colégio cuja mensalidade era R$4000 por mês, conseguiu esgotar todo o conteúdo cobrado no ENEM sem qualquer interrupção por conta de tiroteios advindos de uma guerra interna entre Estado e População, detém vantagens absurdas em relação ao adolescente que não estudou nessas mesmas condições. Poder apenas estudar (em um bom colégio), sem qualquer outra obrigação, como exercer o trabalho produtivo ou o reprodutivo, é um enorme privilégio, que deve ser levado em conta antes de qualquer crítica às políticas afirmativas, as quais, por suas vezes, vêm justamente mitigar esse enorme fosso que existe entre as classes sociais.

Pedro II

Eu sei, porque pertenço à classe média, que esta classe tende a acreditar que o mundo é feito por ela e para ela, e que os outros – o desconhecido, que causa medo – ou não conseguiram “ascender” na vida porque não quiseram, ou não capazes, ou porque é “assim mesmo”, o que chamo de banalização da pobreza e da desigualdade. Assim, a gente adora contar vantagens sobre como nos esforçamos para chegar aonde chegamos, de como somos ótimxs e merecedorxs de tudo que temos, e ignoramos tudo aquilo que possuíamos previamente e que nos possibilitou e nos direcionou para ter o que temos, para ser o que já esperavam que nos tornaríamos.

A Raça

Um dos maiores erros que cometemos como sociedade, e que aprendi com o Jessé Souza ao ler “A Elite do Atraso”, é ignorar a formação da sociedade brasileira no seio da escravidão dos povos africanos. Os africanos escravizados e os seus descendentes já nascidos aqui eram vistos, literalmente, como não pessoas, uma maneira de maximizar a inferiorização de um ser humano. O estabelecimento do homem branco (homem = macho) como superior foi determinante para culpar os negros pelo atraso da sociedade brasileira (logo eles, de quem tudo foi tirado) e estabelecer que a chave para o progresso seria embranquecer a população. Os negros se tornaram um excedente de mão de obra quando se iniciou a política de incentivo à imigração dos europeus, principalmente os italianos e os alemães.

A marginalização da população negra no Brasil é tão evidente, tanto historicamente, como nos dias atuais, que eu fico perplexa quando ainda escuto que “não existe racismo no Brasil” ou que a política de cotas raciais enfatiza o “vitimismo” e até mesmo o próprio “racismo”, como se o grupo oprimido tivesse escolhido ser discriminado ou marginalizado, ou como se devesse ignorar sua condição de vítima – o que realmente são! – dos opressores brancos. Outra questão importante é que nunca devemos tratar a exceção como um padrão. Acontece muito de uma pessoa negra ter estudado, sem respaldo de qualquer política afirmativa, e ter se tornado um grande Contador, por exemplo, ao passo que os seus colegas da comunidade viraram todos “bandidos”. Antes de dizer que essa pessoa fez tudo por merecer, por esforço próprio e que os outros é que são preguiçosos e “vagabundos”, é preferível perguntar por que ela fugiu ao padrão estabelecido para seu grupo social e por que existe esse padrão. Não podemos tratar acontecimentos micro sociais como regra.

Desabafo Social
Foto: Desabafo Social

Assim, eu faço um convite para fazermos alguns exercícios básicos. Quantos médicos são negros em um Hospital de luxo, que recebem, digamos, R$10.000 por mês? E quantos são os faxineiros negros desse hospital, que recebem R$1.000 por mês? Quantas são as professoras universitárias negras, com título PhD, do seu curso de Economia, que recebem R$9.900 por mês? E quantas são as atendentes negras da cantina, que recebem R$990 por mês?

Quantos são os moradores de rua brancos, enxotados pelos cidadãos de bem, ou até mesmo mortos por eles no calar da noite? E quantos são os garis brancos, que exercem um trabalho tão desvalorizado e estigmatizado (ao mesmo tempo, tão importante…)?

Não podemos mais tratar essas disparidades raciais e de classe como naturais ou inerentes, e não podemos mais pensar que se os grupos minoritários buscam pelos seus direitos, automaticamente nós perderemos os nossos privilégios. Porém, antes de tudo, é preciso que os detentores desses privilégios passem a ser reconhecer como privilegiados, porque é isso que somos, em maior ou menor grau. Agora eu faço outro convite: responda às perguntas abaixo apenas com “sim” ou “não” e, se a maioria for “não”, reconheça-se como um/a privilegiado/a.

  1. Você já foi impedido/a de entrar em algum estabelecimento devido à sua cor?
  2. Você já foi eliminado de uma entrevista de emprego por conta do seu cabelo?
  3. Você já foi perseguido por um carro de polícia e tratado com desconfiança e hostilidade devido à sua cor de pele?
  4. Já te colocaram de frente para um muro, te revistaram e, posteriormente, bateram em você, ou coisa pior?
  5. Você já perdeu um filho porque a polícia o confundiu com um “suspeito”, mesmo que ele fosse pré-adolescente e estivesse com o uniforme da escola?
  6. Você já foi confundido com um suspeito??
  7. Algum segurança privado já te perseguiu, de forma nada discreta, dentro de um supermercado, porque você estava com uma “mochila grande”? E aí você viu uma mulher branca com uma mochila enorme e nada fizeram com ela?
  8. Já pediram para revistar a sua bolsa ao sair de algum estabelecimento?
  9. Já mudaram de calçada quando você estava passando? Já correram de você, por você parecer alguma coisa?
  10. Já mandaram você se arrumar mais, para não ficar com “cara de empregada”? Já pediram para você prender seu cabelo ou alisá-lo, para não “atrapalhar os outros”?
  11. Você sentiu falta de se ver representado nos personagens de filmes, de TV, de livros e até em bonecas e bonecos?
  12. Você sentiu que teve que fazer muito mais esforço para provar que você é competente? Você já teve que se explicar por possuir algum bem de valor mais alto?
  13. Você já foi confundido como a babá do seu filho, só porque ele nasceu mais branco?
  14. Você já percebeu que o seu parceiro teve vergonha de te apresentar para a família, ou inventou qualquer desculpa para não te namorar, mas no fundo era tudo por conta da sua cor de pele? Você já sentiu que te veem apenas como alguém “para uma noite”?
  15. Você tem dificuldade em saber sobre seus ancestrais e até de poder bradar o orgulho do seu tataravó que era da cidade X do país Y e veio na data Z para o Brasil?
  16. Você já sofreu ameaças devido à sua orientação sexual?
  17. Você já viu amigos ou conhecidos serem mortos porque eram gays?
  18. Você já foi assediado na rua? Já se sentiu desconfortável com olhares maldosos? Já ficaram relando em você dentro do ônibus?
  19. Você já foi ameaçado pela companheira, se ela cogitasse em terminar com você?
  20. Você já foi violado?
  21. Você já foi xingado de puta, vadia e vagabunda, simplesmente por existir?
  22. É você quem faz a maioria dos serviços domésticos do seu lar? É você quem tem que trabalhar em tempo parcial ou largar o trabalho para cuidar da casa e dos filhos?

 

Meu depoimento

Há algum tempo eu tenho tentado reconhecer os privilégios de ser branca e de classe média, e sei que, mesmo sendo mulher, estou em uma posição muito mais segura e confortável do que os jovens negros do meu país. Nesse texto, eu não me atentei muito às desigualdades de gênero, porque gostaria de explorar esses dois outros demarcadores que são muito determinantes para a exclusão social no Brasil, e porque eu queria chegar até aqui, ao me reconhecer como uma mulher, branca, cis e privilegiada.

É preciso reforçar que, no Brasil, existem classes sociais e que elas são determinantes para o futuro de um/a jovem. Estudar é postergar um possível ganho salarial necessário à sobrevivência diária, e quem possui os meios para ser custeado/a durante esse período é um/a grande privilegiado/a.

Durante toda a minha vida, eu estudei em escolas particulares. Quando eu nasci, meus pais eram um casal típico da Classe C e que prosperaram, dentro do espectro da classe média, ao longo dos anos. Assim, fiz o Ensino Médio em um colégio caríssimo, considerado “o melhor” de Belo Horizonte. Sempre fiz atividades extraclasses como esportes, dança, música e línguas estrangeiras. Ingressar na UFMG não era mais que a minha obrigação, depois de ter todos os meios e todo o suporte para tanto. Aliás, meu futuro foi traçado ainda na barriga da minha mãe. Eu desviei um pouco do caminho previamente desenhado para mim, mas nada que me deixasse “pior”, no que tange à situação econômica e social dos meus pais.

Eu só comecei a trabalhar aos 18 anos, já na faculdade, mas o dinheiro que eu recebia sempre foi para fazer e comprar coisas para mim mesma. Eu nunca paguei 1 centavo de qualquer conta de luz, de supermercado etc., da casa dos meus pais. Casa esta, inclusive, muito “luxuosa”. Sou filha única e sempre tive um quarto e um banheiro só para mim. O apartamento é tão grande que sobram quartos e eu pude fazer um mini escritório, onde estudava com tranquilidade, sem qualquer coisa que me atrapalhasse. A comida sempre esteve à mesa e o máximo que eu fazia era lavar uns pratos e uns copos – de vez em quando. A casa sempre estava magicamente limpa, minhas roupas sempre cheirosas. O meu tempo nunca foi dispendido em qualquer outra atividade a não ser os estudos e aquilo que levaria ao meu crescimento profissional.

Morávamos em um bairro de classe média e que era próximo ao centro e ao comércio, bem como a diversas localidades culturais. Meu acesso à cultura sempre foi vasto e possível. Nunca tive que ficar 2h para ir a um lugar e mais 2h para voltar em um transporte público. Havia 2 carros na garagem, o que facilitava o meu deslocamento pela cidade.

Quando decidi estudar para concursos públicos, pude ficar 1 ano sem trabalhar e me dedicar integralmente aos estudos. Tive acesso aos melhores cursinhos e aos melhores materiais. Tive condições de fazer provas em outros estados. O meu tempo era dedicado, integralmente, a mim mesma e ao “meu futuro” (e à nossa cachorra também, rsrs).

Quando eu assumi o meu cargo, muitos terceirizados foram demitidos, pois, em um primeiro momento, nós entramos para fazer as atividades que eles antes realizavam. Fiquei feliz ao tomar posse, só que com um pouco de pesar, pois sabia que muitos deles teriam dificuldade em se restabelecer no mercado de trabalho, além de já estarem em uma relação precária de trabalho como empregados terceirizados. Uma tia então falou que eu não precisava me chatear, pois foi mérito meu ter passado neste concurso, e se eles tentaram e não passaram, é porque não foram capazes.

Será que é isso mesmo? Como eu escrevi, eu vivi o melhor cenário para estudar, porque eu pude só estudar e mais nada. Já eles trabalhavam 8h por dia, tinham uma família inteira para cuidar e sustentar, moravam longe – muito longe – e ficavam aquelas 2h para ir e 2h para voltar do trabalho, talvez não puderam comprar os melhores cursinhos, porque são mais caros… Estávamos mesmo em pé de igualdade, para tudo ser uma simples questão de mérito?

Eu sou uma pessoa que tem empatia até demais, a ponto de eu ter que segurar as pontas para não me adoecer. É incrível como os meus pais, ao mesmo tempo em que me concederam todas as oportunidades e todas as possibilidades para eu ser o que esperavam de mim, também me passaram esse grande conhecimento. Tenho a facilidade de me colocar no lugar de uma pessoa completamente oposta e exerço essa empatia ao mesmo tempo em que me vejo tão privilegiada por ser quem eu sou. Porém, o meu objetivo nesse texto foi mostrar que o caminho inverso também é possível.

É possível – e bastante necessário – reconhecer os privilégios e, aos poucos, tonar-se uma pessoa mais empática. Precisamos que isso aconteça de forma urgente, para que a nossa sociedade não colapse de vez e, se isso acontecer, todos perderão, inclusive o mais privilegiado (não incluem os banqueiros, rsrs). Uma sociedade mais justa e mais equilibrada é um dos grandes segredos para uma sociedade também mais próspera e feliz.

Ainda há tempo para revertemos um rumo tão sombrio que escolhemos para seguir.

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