Hoje eu vou escrever um texto que conta a história de uma briga de mais ou menos 22 anos. Sim, ela começou com quando eu tinha de 5 para 6 aninhos. Nós não conseguimos nos resolver até hoje, nem mesmo depois de eu ter me tornado feminista e de ter adotado o discurso de “amar a si mesma”, de “amar o seu próprio corpo”.
Eu fui uma criança gorda, até os meus 8 anos de idade. Sempre tive que lidar com apelidos gordofóbicos, e chorava, às escondidas, cada vez que me chamavam de “baleia”, “baleia orca”, “Free Willy”, “sua gorda”, “sua feia” (sim, ser gorda é, muitas vezes, ser feia também – no máximo a gente será “bonita de rosto”).
Ao mesmo tempo, eu era uma criança muito inteligente, bem à frente dos meus coleguinhas de classe. Aprendi a ler muito antes deles e me tornei monitora, junto com a professora, nas aulas de alfabetização. Ser inteligente era uma forma de compensar a minha “feiura”: o meu maior defeito nessa vida era ser gorda. Lembro-me de uma atividade quando tinha 7 anos, na qual deveríamos escrever nossas qualidades e nossos defeitos. Eu era tão amada pelos meus pais, tão inteligente e tão criativa, que o único defeito que eu consegui escrever foi “Sou gorda. Só” – assim mesmo! (risos).

Aos 8 anos, fiz alguns exames de sangue que apontaram taxas altas de colesterol total, de LDL e, também, de glicose, muito além do recomendado para uma criança. Meus pais iniciaram uma dieta em casa, emagreci muito, e os meus exames se normalizaram. A partir de então, eu nunca mais parei de fazer “dietas” na minha vida.
Depois que emagreci, passei a entrar em listas das “mais bonitas” da sala. Alguns meninos começaram a “gostar” de mim. A família inteira elogiava o meu novo visual e dizia que eu seria uma menina linda. Para que eu mantivesse esse status, a comida virou um pecado. Eu tinha que me controlar o tempo inteiro e, cada vez que eu comia um doce, um salgadinho, eu me culpava. Eu sentia a necessidade de falar para os outros que comi isso ou aquilo e quão errada foi a minha atitude.

As coisas só pioraram na adolescência. Eu tinha mais autonomia para escolher os meus lanches, mas, muitas vezes, eu escolhia, simplesmente, não comer. Lembro que, aos 13 anos, eu colocava um pedacinho de chicletes na boca, durante o recreio, para não comer nada e para recusar as comidas que os colegas me ofereciam. Durante o Ensino Médio, meu lanche era sempre – e no máximo – uma maçã, mas eu ficava aguada vendo meus amigos(as) comerem pães de queijo, bolos de cenoura com calda de chocolate, ou salgadinhos de catupiry. Foi com 15 anos que inventei de comer até no máximo às 18:00, apenas frutas e 1 copo de leite – nada de carboidratos, pães, misto quentes, jantas. Nas festinhas de 15 anos, eu não comia nenhum salgadinho, mas escolhia uns 3 docinhos para saborear, não sem antes ter dançado bastante que, aí, as calorias seriam compensadas.
Meu almoço era sempre regrado e eu me orgulhava de encher meu prato de salada, enquanto meus amiguinhos o recheavam de massas e carnes de churrasco. Nada de comer o doce do tio que ficava na porta do colégio, exceto nas sextas – mas não teria lanche da tarde, para compensar. Dessa forma, eu conseguia manter, minimante, o conceito de beleza que adotei para mim mesma e que, não por mero acaso, coincidia com o padrão do senso comum. Na verdade, eu tentava manter a pecha de ser uma menina inteligente, mas também bonita, ou bonita, mas inteligente. Já não sabia o que era mais importante para mim.

Depois que voltei de um intercâmbio, já na faculdade, eu engordei 6kg. A maioria das pessoas dizia que eu ainda estava ótima, mas ninguém mais negava quando eu falava que eu era “gordinha”: sim, a minha vida inteira eu fiquei – e ainda fico – repetindo que sou gorda, como se eu tivesse que pedir desculpas ao mundo por eu existir. Confesso que ficava feliz em escutar que eu não era nada gorda, que isso tudo era besteira… Mas, ao me olhar no espelho, eu sempre miro diretamente na barriga e sempre reafirmo, em pensamento, que não está suficiente, nunca está!
Fiz dietas malucas, do tipo comer uma clara de ovo a tarde, meia uva no café da manhã, 1 semana tomando sopa de aipo e nabo… Eu tinha que perder aquela barriga, mas não estava fácil. Já me disseram que quem foi gorda até os 7 anos terá que viver de dieta o resto da vida, que será muito mais difícil emagrecer, e eu vestia essa carapuça, às vezes para me consolar, já que não estava conseguindo emagrecer, às vezes para me culpar mais ainda e sentir tanta raiva de mim mesma.

No ano seguinte, já com 21 anos, eu fui diagnosticada com hipertireoidismo, uma doença grave, que poderia deixar várias sequelas no meu corpo se eu não a tratasse devidamente. Quando me vi doente, vi-me, também, a pessoa mais feliz do mundo: podia comer o tanto que eu queria, que não engordava (o hipertireoidismo acelera o nosso metabolismo). Todo mundo da faculdade me elogiava, eu estava mais magra e mais bonita. Devorava bombinhas de chocolate no meu segundo intercâmbio, e nada acontecia! Comia baguete com manteiga à noite, depois das 19:00. Mas eu estava d-o-e-n-t-e, doente, e não me preocupava com a minha saúde, estava despreocupada, pois não engordava mais, isso sim sempre foi a minha maior fonte de preocupação.

Cheguei a burlar o tratamento que fazia com o endocrinologista, porque estava engordando (claro, eu estava normalizando o meu metabolismo). Engordei uns 7kg novamente e, simplesmente, não conseguia mais encarar o espelho. Na praia, eu só ficava de roupa. Sair com os amigos, só se fosse muito produzida. Se eu começasse a namorar, os momentos íntimos só seriam no escuro. Só queria usar batas e vestidos inteiros, que não marcassem a minha barriga. Ressuscitei uma cinta que me deixava sem respirar. Cheguei a usar 3 tipos de cinta de uma só vez, para ficar mais bonita num tubinho. Não conseguia me olhar no espelho quando ia tomar banho. Até em casa eu ficava de cinta, para não me deparar com as dobras na minha barriga.

Quando virei vegetariana, perdi alguns quilos naturalmente e, ao refazer completamente a minha dieta, tentei manter aquele peso. Nessa época, eu estava me conhecendo melhor, deixava meus cabelos mais naturais, usava menos maquiagem e não ligava *tanto* para quantas dobras minha barriga apresentava. Eu estava feliz e me sentia mais saudável, por comer de forma mais ética e decente. Porém, as loucuras dos jejuns continuavam. Eu não queria mais restringir o que eu comia, mas não podia ultrapassar certos horários. Já houve épocas em que eu parava de comer às 15:00 e só fazia a próxima refeição às 8:00 do dia seguinte (atualização: retomei a rotina do jejum intermitente, mas agora, com outra cabeça!).
Cheguei ao Rio de Janeiro magrinha – só até colocar o biquíni. As fotos na praia podem estar lindas, mas eu dou um zoom na barriga e acho tudo horrível.
Primeiramente, disse a mim mesma que não iria entrar nessa onda de culto ao corpo, que iria fazer mais exercícios físicos e comer melhor, mas só por conta da saúde. Depois, eu comecei a perceber que o padrão de beleza que se exige das mulheres, principalmente das brancas e de classes mais altas, era uma coisa muito esquisita e meio que anti-natural. A mulher precisa ser magra, mas os peitos, as coxas e a bunda devem ser muito grandes. Quando morava em BH, eu só queria ser magra mesmo. Aqui é mais difícil. Então, eu fui percebendo que não era só uma questão de malhar direitinho e comer direitinho, é mais que isso: há muita intervenção cirúrgica. E quanto mais uma mulher faz uma plástica, mais ela quer fazer outras, porque nunca está suficiente!
Também, fui percebendo que há uma variedade de corpos, e que realmente há pessoas que são naturalmente magras. Por isso, reafirmo o tanto que é gordofóbico fingir que se está preocupadx com a saúde de uma pessoa gorda. Há pessoas magras e doentes, há pessoas gordas e saudáveis. Há pessoas que são magras naturalmente, há pessoas que podem fazer mil dietas que não ficarão magrelas. Há gorduras espalhadas pelo nosso corpo, há aquelas que se concentram em certos lugares, por mais que se coma meia uva no café da manhã e 1 clara de ovo no lanche da tarde!
Eu sei que há beleza em todas em corpos, que uma mulher é bonita por inteiro (não só “de corpo”, “de rosto”) e que a gente não precisa se culpar por comer aquilo que sentimos vontade, e nem precisamos repetir trocentas vezes que estamos gordas, ou pedir para a amiga deletar uma foto porque se está gorda.
Por mais que tenhamos nos libertado de várias amarras do patriarcado, a beleza é, talvez, o fator político que continua mais dominante nos dias de hoje. Da mesma forma em que eu vejo uma mulher negra crespa e empoderada no Instagram, eu me deparo, não raro, com uma mulher extremamente magra, que fez lipoaspiração, mas disse que foi apenas uma “dietinha” que a deixou assim. Nem de longe somos todas representadas nas mídias, nas bonecas, nos perfis profissionais… Mais uma vez, nós temos que nos adequar ao que nos está imposto, e não o contrário – ainda não conseguimos impor os nossos desejos, ainda não nos sentimos verdadeiramente bonitas, ainda não somos livres nesse sentido.
Atualmente, eu me tornei vegana e estou muito feliz em assumir uma responsabilidade tão grande e tão nobre, por meio do meu empenho na luta contra a exploração animal, de todas as formas. Eu não acho que preciso mudar nada na minha dieta. A barriga continua lá, apesar de comer tão “saudável”. Preciso encará-la com a mesma naturalidade da sua existência. Eu realmente não preciso mudar em nada. Há algum tempo, eu me tornei suficiente, e eu preciso reafirmar isso diante do espelho, por mais que o mundo insista em sempre dizer o contrário.

Nós somos suficientes.