Foto: Hospital Santa Cruz
As declarações do presidente de extrema direita do Brasil, Jair Bolsonaro, têm causado espanto e indignação por diversas camadas sociais que conformam uma população tão estratificada como a nossa.
Moro em um bairro de classe média alta do Rio de Janeiro e escuto panelas a bater, pelo 12º dia seguido, sempre às 20:30. E eu sei bem que quem bate panelas não é a esquerda. Essas são as mesmas panelas que tilintavam em 2016 e que me causavam arrepios. Assim, o atual presidente tem perdido boa parte do eleitorado, não porque este não concorde com alguns membros de sua equipe, despreparados, mas que abordam interesses comuns com a classe média, mas porque o chefe do Executivo Federal tem atentado contra uma situação de saúde pública que pode acometer qualquer pessoa, rica ou pobre, do bem ou do mal, jovem ou velha.
A COVID-19 é uma doença que foi trazida, ao Brasil, pelos ricos e, dessa vez, não vai adiantar culpar a pobreza pela sua disseminação. Todo mundo sabe que, se os sistemas de saúde, tanto o público quanto o privado, entrarem em colapso, não haverá dinheiro capaz de comprar um leito de hospital ou um ventilador pulmonar particular, porque eles, simplesmente, não existirão. Essa talvez seja a primeira vez em que pessoas que possuem plano de saúde privados se encontrem em uma situação tão ruim quanto aquelas que dependem somente do nosso tão precioso SUS.
Tenho escutado de muitas pessoas que o presidente da República é despreparado, imaturo, louco. Que ele não tinha capacidade nem postura para o ocupar o cargo público mais alto da nação, todo mundo já sabia, inclusive quem nele votou. Figura conhecida na política há nada menos que 30 anos, tenho quase certeza de que apostaram muito mais na sua equipe econômica do que nele, propriamente. De tão burro e idiota, ele poderia ser “isolado” a qualquer momento – o importante é que as medidas ultraliberais tomassem vigor e satisfizessem os donos do capital fictício, esses que mandam, verdadeiramente, no nosso país. Porém, nem isso aconteceu. Sua equipe é tão desastrosa como ele. O país passaria por uma crise econômica com ou sem coronavírus.
A parcela do eleitorado que ganhou o codinome “gado” e que nele votou exclusivamente por comungar a mesma “ideologia” não teria, sozinha, condições de tê-lo colocado no Palácio do Planalto. Porém, eu começo a acreditar que há muitos que são as duas coisas ao mesmo tempo: “gado” com interesses econômicos, agora chamado de “empresários bolsonaristas”. Os mesmos que, covardemente, mandam os trabalhadores da ralé voltarem à ativa protegidos do vírus dentro de seus carros.
Bom, aonde eu quero chegar com isso tudo? Comecei a desconfiar que o presidente não é só um louco que precisa de intervenção psiquiátrica. Sim, conheço muitos seguidores dele que são somente loucos, outros que são extremamente homofóbicos, racistas e misóginos, outros que são frustrados e querem achar culpados externos para seus próprios fracassos e outros que são, simplesmente, alienados políticos, mas se sentem PhD em ciência politica por repetir jargões e “ideias” fáceis de serem reproduzidas em uma ou duas frases de efeito. Mas ele não.
A meu ver, ele age por três vertentes: a primeira é a político–pragmática. Com uma crise econômica sem precedentes que está por vir (mas estaria ainda que não houvesse a pandemia, já que o ultraliberalismo é uma receita para o fracasso de qualquer sistema econômico-social), e como ele foi eleito como uma “aposta” do mercado financeiro, junto da classe média, para o aumento da concentração do capital, sua intenção é agradar, manter esse eleitorado e ser reeleito, por ele, em 2022. Por meio de análises frágeis e sem qualquer respaldo científico, seu discurso de o “país não parar” serve para mostrar que ele coloca o empresariado em primeiro lugar. Para que suas falas tenham algum sentido, ele minimiza a doença, ao chamá-la de “gripezinha”, pois se assim o fosse, não teria qualquer problema para que os trabalhadores voltassem a circular nas ruas.
Então, há uma distorção completa da realidade, mas não porque ele é pura e simplesmente burro e louco, mas porque ele quer mostrar para essa parte do eleitorado que está disposto a fazer tudo para não os desapontar. E, assim, a crise econômica, que será inevitável, não seria causada pelo governo federal, e sim pelos governadores e pelos prefeitos, que impuserem, à população, a quarentena. E essa medida será tida, por ele, como a única causa da crise.
A segunda é sobre sua política externa de alinhamento automático com os EUA.
O presidente do Brasil foi eleito, em 2018, da mesma forma e com os mesmos métodos que Donald Trump se utilizou, em 2016, nos EUA. Fake News, utilização em massa das redes sociais, apelo à ideologia de extrema direita, uso de populismo barato, negacionismo, nacionalismo, patriotismo, fundamentalismo religioso, egocentrismo… Ademais, os dois tiveram o mesmo mentor: Steve Bannon. É claro que, como damos um jeito de incrementar tudo, tipo quando colocamos cream cheese no sushi ou comemos pizza de brigadeiro, o presidente daqui tem outro guru, muito pior inclusive, que é responsável por manter sempre acesa a chama da guerra ideológica, por criar as cortinas de fumaça e por deixar perene o clima de guerra e de inimigos imaginários, sempre prontos para “atrapalhar” o governo.
Inicialmente, Trump também negou a gravidade da pandemia da COVID-19, tentou minimizar os problemas e disse que os EUA não podiam parar. Trump só pensa na sua reeleição, e uma crise econômica não seria bem-vinda a essa altura do campeonato. Devido a um alinhamento automático com os EUA, no âmbito diplomático, que esse governo adotou desde o início, o que é extremamente prejudicial à nossa imagem no exterior e, com certeza, faz o Barão de Rio Branco se revirar em seu caixão, o presidente daqui aposta todas as suas fichas nas relações com o país, ainda que tope entrar em diversas situações péssimas de ganha-perde.
Não sei se é por inocência, ou se tem algo por trás disso que ainda não desvendamos, mas jogar fora todas as relações comerciais e diplomáticas com os demais países, principalmente os latino-americanos e os BRICS, não parece ter sido uma decisão muito inteligente. Não faz qualquer sentido e, aí, tendemos a pensar que são outros atos de loucura e puramente ideológicos.
Essa forma de agir fez com que o presidente daqui endossasse o discurso de que a COVID-19 é um “resfriadinho” e que o país deveria voltar à normalidade na esfera econômica, mesmo após Trump ter mudado o seu posicionamento (os EUA serão o novo epicentro da doença). Da mesma forma, criou conflitos diplomáticos graves com o nosso maior parceiro comercial e único país que se dispôs a nos auxiliar durante a pandemia, ao tentar cunhar o termo “vírus chinês” (termo inventado por Trump) para o SARS-CoV-2, com ares de preconceito, xenofobia e, é claro, inventou mais um inimigo-externo- comunista culpado por tudo que acontece. Porém, o que gostaria de mostrar é que imitar o discurso de Trump não foi somente porque o presidente daqui é um simples lambe-botas, bobo e retardado. Essa é a nossa Diplomacia oficial, essa forma de agir é deliberada, ainda que seja tosca e desastrosa.
Agora sim, a terceira via é mesmo a ideológica.
O presidente daqui só ganhou as eleições porque diversos atores fizeram com a polarização política determinasse os rumos e os votos daqueles que não queriam mais que o Brasil fosse governando por um partido de centro-esquerda. Criar inimigos externos, manter conflitos ideológicos imaginários e postar polemiquinhas no Twitter é a essência do atual governo, é o que o mantém vivo, é o que ainda possibilita que ele continue a existir. Sem conflitos, guerrinhas, ataques, ameaças, xingamentos e opiniões contrárias à realidade, à razão e à ciência, esse governo perderia o seu sentido de ser.
Porém, o que eu gostaria de mostrar é que essas atitudes não são tomadas por pessoas completamente loucas, que agem sem pensar, que são “esquentadas”. Todas essas ações são antes discutidas e deliberadas. Todas têm um propósito. Eles sabem muito bem o que falam, o que escrevem, o que postam e o que isso irá causar no futuro próximo.
É preciso que comecemos a encarar que elegemos um presidente de extrema direita, genuinamente autoritário, que reverencia a ditadura militar e seus torturadores, que nega os direitos das minorias, que prega a violência como solução de conflitos sociais complexos, e que hoje nos (des)governa com essa ideologia. Sim, é difícil ter que lidar com os monstros e os fantasmas que fazem parte da nossa história, da formação do nosso povo e da nossa política, bem como o nosso histórico de tantos ataques à democracia, a qual nunca conseguiu ser verdadeiramente consolidada.
E a eleição de 2018 será mais um desses monstros, ao lado do colonialismo, da escravidão, da república oligárquica, da ditadura militar, e de todos os outros governos antidemocráticos que cravaram a nossa história política (vale lembrar que o atual presidente sempre colocou em dúvida a validade dos votos na urnas eletrônicas – recentemente falou, sem qualquer prova material, que as eleições de 2018 foram fraudadas, ainda que tenha vencido o pleito).
Porém é preciso, também, que saibamos que uma pessoa de extrema direita não é pura e simplesmente louca, por mais que os ideais compartilhados sejam desprovidos de qualquer humanidade, racionalidade e razoabilidade. A pessoa extremista age com propósitos. Ela se encontra em grupos que discutem e consolidam essa ideologia. Essas ideias não partem de vozes individuais da cabeça de cada extremista – elas são compartilhadas e legitimadas em grupo, por mais que muitas delas sejam enquadradas como crimes em nosso Código Penal.
A extrema direita age no campo do negacionismo e da eugenia. Para muitos “bolsonaristas”, brasileiro pobre morrer é um fato dado, e eles não teriam motivo para se preocupar com isso. O “empresariado bolsonarista mainstream” é aquele que ainda vê o trabalhador como uma mera força de trabalho facilmente substituível. É por isso que, por mais que neguem a dispersão de uma doença gravíssima, eles sabem muito bem que muitos serão contaminados e morrerão. Porém, esses muitos serão, principalmente, pessoas mais pobres, as quais eles estão mandando voltar a circular e a trabalhar. Os donos dessas empresas chamam “o gado ao matadouro” protegidos de dentro dos seus carros. Posteriormente, eles continuarão protegidos isolados em seus escritórios ou em home office.
O que quero mostrar é que o extremista sabe muito bem que é extremista e ele, inclusive, orgulha-se disso. Por isso que, atualmente, eu me oponho a chamar o presidente daqui de louco, já que a loucura pode ser usada como escusa e torná-lo, de fato, inimputável.
Se continuarmos a chamá-lo de louco, ele continuará livre para vociferar todos os seus preconceitos, seus ódios e a atacar nossos direitos básicos – a saúde pública, como agora acontece, é uma forma muito clara de ver esse ataque, bem menos abstrata do que quando falamos de ataques a minorias, por exemplo. Se passarmos a lidar com ele de forma racional e legal, estaremos diante de uma pessoa extremista e que é responsável por tudo aquilo que ela pensa, escreve e faz. E o que mais precisamos fazer é que extremistas assumam a responsabilidade pelos danos que causam à sociedade e que paguem por eles pelos meios jurídicos e legais.
Fontes: