Foto: Jornal da Orla
Sempre digo que a extrema direita só existe porque ela consegue criar suas próprias narrativas e, assim, cria também uma “realidade paralela”, ao mesmo tempo em que distorce, fortemente, a realidade per se.
Foi dito, entre os motivos para defender a insana ideia de que o isolamento social deveria cessar, que, por estarem a maior parte do tempo em casa, sem trabalharem e “colocarem o pão na mesa”, o casal (mulher e homem) passaria a brigar mais e, dessa forma, a mulher começaria a “apanhar do marido”.
Há diversos erros nessa fala, que saiu da boca de alguém que ocupa o cargo de maior liderança do país, e que deveria saber, minimamente, que ano passado, no Brasil, mais de 1,5 milhão de mulheres foram espancadas¹ (ou 1 mulher é agredida a 4 minutos no Brasil²), e que estamos no ranking dos países que possuem as maiores taxas de feminicídio do mundo. Portanto, este é um assunto seríssimo e gravíssimo, que deve ser tratado com respeito e a ele deve ser dada a devida importância.
É fato que os casos de violência contra a mulher cresceram e estão crescendo com o isolamento social. Segundo o Portal G1, em março, o número de casos subiu 30% em São Paulo e 50% no Rio de Janeiro. Na página do “Ministério da Mulher”, há notícias sobre o aumento do número de ligações à Ouvidoria do Ministério, por meio do Disque 180.
De acordo com Viera et al (2020, p. 2), “no Brasil, segundo a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ONDH), do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), entre os dias 1º e 25 de março, mês da mulher, houve crescimento de 18% no número de denúncias registradas pelos serviços Disque 100 e Ligue 180”.
Porém, em muitas localidades, os casos de violência contra a mulher estão subnotificados. De acordo com reportagem da RBA, as mulheres deixam de denunciar por vários motivos inerentes à quarentena. Por terem medo de contrair um doença altamente contagiosa, elas evitam sair de casa, seja para ir a alguma delegacia ou para procurar algum atendimento de saúde pública; por estarem muito tempo com seus agressores, muitas vezes elas não possuem acesso livre ao telefone e à internet, devido à violência patrimonial cometida pelo agressor; e por não mais irem ao trabalho, elas deixam de ter a opção de passar em alguma delegacia, no caminho, para denunciar o seu agressor.
Destarte, é importante que as localidades adotem novos métodos para que as denúncias não sejam descontinuadas, como a “Delegacia Online” aqui no Rio de Janeiro, e também em São Paulo, as quais possibilitam que os Boletins de Ocorrência sejam feitos pela internet.
Agora, vamos elencar três erros daquela fala desastrosa, mas que simplesmente reflete o quanto somos uma sociedade patriarcal, machista, misógina, violenta, e o pior: somos uma sociedade que ainda naturaliza a violência contra a mulher.
O primeiro foi a indução de que a violência doméstica e de gênero passou a ocorrer somente porque o agressor e a vítima estão mais tempo em casa. Isso não é verdade.
A casa sempre foi um local perigoso para as mulheres. De acordo com dados mais recentes do IPEA (2019), 43,1% dos casos de violência contra a mulher ocorreram dentro de suas casas. No Rio de Janeiro, esse número foi de 60,2%, em 2018. Segundo dados do Datafolha de 2019, em reportagem da BBC News, em mais de 75% dos casos, a mulher conhecia o seu agressor: eles são seus cônjuges ou ex cônjuges, pais, avós, irmãos, padrastos.
No quadro abaixo, coloquei um exemplo do estado do Rio de Janeiro, obtido no Dossiê Mulher RJ de 2019.
No mesmo dossiê, por meio de reportagem da AzMina, percebe-se que as denúncias são feitas, majoritariamente, nos fins de semana (33%) e no período noturno (18:00 às 23:59). Dessa forma, sempre que a mulher passa mais tempo em casa, ela sofre mais com a violência doméstica – esse não é um fato novo que surgiu com a quarentena.
Assim, ficar mais tempo em casa é um fator agravante da violência contra a mulher, e não um fator que concebe a violência em si.
Da mesma forma, acabar com a quarentena e voltar ao trabalho não fará com que cessem as agressões: elas continuarão a ocorrer quando vítima e agressor estiverem juntos. Assim, a quarentena não criou a violência contra a mulher, tampouco o seu fim resultará o fim da violência de gênero.
O segundo foi a tentativa de associar um fator puramente econômico à violência, quando, no entanto, esta tem por base fatores sociais de desigualdade de gênero.
Essa desigualdade também prejudica os homens, por meio da masculinidade tóxica, já que a ele é cabido o papel de “provedor” da casa, e quando não o conseguir exercê-lo, sentir-se-á frustrado e desvalorizado. Até hoje, sob a égide do patriarcado, essa “frustração” pode ser “descontada” em suas parceiras, e foi exatamente isso que a tal fala tentou naturalizar.
Entretanto, a violência doméstica e de gênero permeia todas as classes sociais, e está muito presente nas classes mais alta, nas quais nunca faltaria o tal do pão na mesa. Não obstante, segundo pesquisa recente do IPEA (2019), as mulheres economicamente ativas sofrem mais com a violência doméstica do que as que não estão inseridas no mercado de trabalho. Assim, podemos inferir que a violência está muito presente nos lares que possuem uma renda familiar mais elevada, e nos quais a mulher pode, ainda, exercer a chefia familiar.

Isso não afasta o fato de que as são as mulheres negras (59,4% das vítimas, segundo Dossiê PAGU) e pobres as que mais sofrem com a violência de gênero. A violência percorre todas as classes sociais, mas cada mulher vive uma realidade. Para as mais pobres, há mais dificuldade em acessar os serviços emergenciais de proteção, seja porque não possuem as informações necessárias, seja porque a polícia simplesmente não entra nos lugares onde elas moram, como nas favelas dominadas pelo tráfico de drogas ou pelas organizações paramilitares (milícias), e elas tampouco confiam nesta instituição.
Em suma, algumas mudanças no arranjo dos papeis de gênero em nada mudou o comportamento agressivo do homem: mesmo quando é a mulher que coloca o pão na mesa, mesmo quando ela é economicamente independente, isso não a exime de sofrer violências pelo seu cônjuge.
O terceiro foi fornecer uma “solução” para um fator sociológico complexo, multifacetado e que não cessará enquanto não houver, a curto prazo, o afastamento e a punição (que não se restringe somente à esfera legal) do agressor; e a longo prazo, as mudanças de paradigmas no âmbito das relações de gênero e de poder.
Diante do aumento exacerbado do número de casos de violência doméstica em todo o país, deveríamos pensar em políticas públicas que atendam as vítimas de acordo com as possibilidades em situação de pandemia, já que a ida às DEAMs nem sempre serão possíveis. Entretanto, ressalto que as DEAMs e as Casas de Acolhimento de vítimas de violência doméstica estão abertas, bem como os serviços de atendimento à saúde às vítimas continuam funcionando e atendendo essas mulheres!
É importante, neste momento, que as redes de proteção à mulher se estendam para além dos órgãos públicos. Assim, a vítima precisa contar com vizinhos e vizinhas ou com pessoas que estiverem por perto, como funcionários do prédio ou de comércios essenciais perto de sua casa. Podem ser criados grupos de WhatsApp para o apoio às vítimas, não obstante os canais de comunicação com o poder público, como o Disque 180, o Disque 100 e o 190 para emergências, devam SEMPRE ser utilizados.
Um exemplo interessante, aludido pelas fundadoras do coletivo “Juntas e Seguras”, no Espírito Santo, foi o de criar um código que remeta à violência doméstica. Assim, a vítima poderia ir a algum estabelecimento, dizer o código e os funcionários já saberiam que ela estaria em situação de violência.
É claro que ações como essas precisam ser coordenadas e devem ser advindas do Poder Público. Por isso, o que precisamos é de empenho para que os casos não continuem a crescer de forma exorbitante – retóricas enganosas e ardilosas só atrapalham os esforços de mitigação da violência contra a mulher.
Notas
¹ BBC News, acesso em 29/04/2020.
² Folha de S. Paulo, acesso em 29/04/2020.
Fontes e recomendação de leituras:
CERQUEIRA, Daniel; MOURA, Rodrigo, PASINATO, Wânia. Participação no mercado de trabalho e violência doméstica contra as mulheres no Brasil. Texto para discussão / Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. – Brasília : Rio de Janeiro : Ipea, 2019.
VIEIRA, P.R., GARCIA, L.P., MACIEL, E.L.N. Isolamento social e o aumento da violência doméstica: o que isso nos revela? REV BRAS EPIDEMIOL 2020; 23: E200033.
Links (último acesso em 29/04/2020)
https://www.conjur.com.br/2020-abr-11/justica-reforca-canais-denunciar-violencia-domestica
https://azmina.com.br/reportagens/violencia-domestica-na-quarentena-o-que-fazer/
https://www.mapadoacolhimento.org/
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47365503
http://arquivos.proderj.rj.gov.br/isp_imagens/uploads/DossieMulher2019.pdf