Imagem: HQ Dragon Slippers

Nas minhas férias de 2020, fui a um sítio no interior, para ficar ainda mais isolada e cumprir as determinações sanitárias durante a pandemia (que está cada vez pior, devido à necropolítica exercida pelo atual desgoverno).

Ao chegarmos, a esposa do caseiro veio nos receber e conversar sobre a nossa estadia. Meu olhar “biônico” foi direto ao braço dela, que tinha uma marca roxa, bem característica de uma agressão física.

Passei alguns dias encucada, sem conseguir dormir direito, pensando nessa mulher. Ela e o caseiro, com quem era “amasiada”, viviam de forma bastante humilde – a casa era cedida pelo dono do sítio; o caseiro recebe um salário-mínimo por mês; e ela ganha algum dinheiro por faxinas esporádicas que faz na casa. Ela foi rejeitada pela família e não tinha onde morar. O seu relacionamento com o caseiro foi, também, uma busca por uma vida mais estável e financeiramente mais segura. Para quem não tinha nada, um pouco significa muito.

No fim de semana, o casal fez uma festa, na qual chamaram alguns amigos, beberam e escutaram música. No momento em que o caseiro estava bem alterado, ela veio me procurar para conversar. Com muito esforço e algumas palavras ríspidas, consegui tirá-lo de perto da gente. Em um sentimento de posse e de controle explícitos, ele me disse que “a sua mulher” não tinha nada para falar comigo. Também me dirigiu alguns olhares fulminantes, mas incapazes de me intimidarem. Trouxe-a para dentro da casa e, a distância e de máscaras, começamos a conversar.

Ela me relatou que o seu companheiro – eles não eram casados no papel, motivo pelo qual o pastor de sua igreja dizia que eles “viviam em pecado” – batia nela desde o início do relacionamento. As coisas pioravam quando ele bebia, e ele bebia quase todos os dias. Só na semana anterior à que chegamos, ele havia a empurrado e a segurado de forma bruta, o que deixou a marca visível em seu braço. No dia anterior à nossa conversa, ele puxou o cabelo dela várias vezes, ficou perturbando-a e não a deixou dormir, o que, implicitamente, remete a um estupro conjugal.

Logo após esses relatos, ela mudou um pouco o tom e passou a tentar justificar as agressões, ao se autoculpabilizar e isentar a responsabilidade integral de seu algoz. Começou a questionar se ela havia feito alguma coisa que o tivesse “enfezado”, e fizesse com que ele “descontasse” a sua raiva nela.

Repeti, pelo menos umas cinco vezes, que ela não teve culpa de nada – ela era uma vítima, e nada nesse mundo justificaria uma violação ao seu corpo; que bater é errado, e que isso não pode ser visto como “normal” em um relacionamento; e que ele era o único culpado pelas agressões, tanto físicas quanto verbais.

Mesmo assim, ela reiterou que ele não era o único culpado por tudo. Mostrei novamente a minha indignação, e perguntei por que ela havia deixado de reconhecer que o que ele faz é errado. Ela acabou me confessando: se ela terminasse com ele, ela não teria para onde ir. Pelo menos, com ele, ela tinha uma cama para dormir e comida para comer todos os dias.

Nesse momento, senti-me muito impotente. Estamos vivendo um grande retrocesso em nossa sociedade, em que milhares de pessoas estão retornando à pobreza ou à pobreza extrema. Historicamente, as mulheres sempre ganharam menos, por exercerem profissões mais desvalorizadas, em contratos precários, com jornadas reduzidas, de maneira informal e não constante[1].

Por serem, quase sempre, as únicas a assumirem as tarefas domésticas, sejam chefes de família monoparental ou não; e pelo trabalho do cuidado não ser reconhecido como valorativo na sociedade capitalista, em uma dicotomia entre trabalho reprodutivo – não remunerado, inferior, e trabalho produtivo – que gera valor em termos financeiros, superior[2], as mulheres se encontraram em posições inferiores, tanto em relação aos homens, como entre elas mesmas, quando fazemos um recorte de raça e de classe.

Assim, podemos dizer que pobreza tem gênero, raça e classe[3]. As mulheres negras formam a base da nossa pirâmide social; conformam a maior parte das trabalhadoras domésticas e das trabalhadoras informais e precarizadas; são a maioria nas taxas de violência de gênero e de feminicídio; são as que mais vêm sendo expostas durante a pandemia, tanto nos espaços públicos – já que, para manterem suas fontes de renda, precisam sair para trabalhar, e se expõem diariamente ao vírus -, como nos privados, pois são elas que exercem o cuidado, sejam de filhos, idosos ou da parentela em geral, inclusive quando estes contraem a COVID-19.

No mesmo momento, lembrei-me da Casa da Mulher Brasileira. Criada no segundo governo Dilma, ela tem o objetivo de realizar o acolhimento da vítima de violência de gênero em todos os aspectos. Conta com apoio psicossocial, delegacia da mulher, juizado especial, Defensoria Pública, Ministério Público, programas de apoio que visam à emancipação econômica, atendimento à saúde, brinquedoteca para as crianças e alojamento de urgência[4].

Considero este um dos melhores e mais importantes programas sociais já desenvolvidos. Contudo, de acordo com informações do site gov.br, apenas sete casas haviam sido implementadas desde o início do programa. Estavam previstas as inaugurações de mais 25 pelo atual “governo”. Elas estão, principalmente, em capitais e cidades maiores.

Dessa forma, penso que as mulheres que se encontram em cidades pequenas, mais afastadas dos centros urbanos e nas áreas rurais estão mais desemparadas e invisibilizadas. Da mesma forma que políticas públicas como as Rondas (ou Patrulhas) Maria da Penha, realizadas por Polícias Militares de diversos estados, não atendem as mulheres vítimas de violência das favelas, devido à guerra existente entre traficantes, milicianos e polícias, as mulheres que vivem em áreas rurais tampouco são abarcadas por programas preventivos como este.

A situação ficou ainda pior desde o início da pandemia. As mulheres acabam passando mais tempo em casa com seus agressores, e as violências e os abusos se tornam mais constantes. Era, também, ao sair de casa, em momentos em que estavam distantes de seus agressores, que elas aproveitavam para passar em alguma delegacia a fim de realizar as denúncias e solicitar medidas protetivas. Não é incomum que os abusos envolvam o cárcere privado ou o confisco de celulares, única forma de comunicação exterior que a vítima possui. Atendimentos psicossociais, redes e grupos de apoio também tiveram sua continuação prejudicada devido à necessidade de isolamento social.

Assim, dados mais recentes obtidos pela Folha de São Paulo[5] nos mostram que as denúncias de violência doméstica cresceram 555% em São Paulo, desde o início da pandemia. Outra reportagem[6] nos mostra que houve 105 mil denúncias, em 2020, pelo disque 180.

Eu estava, então, diante de uma vítima de violência de gênero financeiramente dependente de seu agressor; com baixa escolaridade, desempregada, socialmente desamparada e sem qualquer perspectiva de mudanças, ainda mais no contexto de uma pandemia completamente descontrolada; que vive em uma região do interior, longe de delegacias da mulher e de casas de acolhimento; que se culpava o tempo todo por sofrer as violências, e achava que fazia alguma coisa para “merecer” apanhar; e que, não obstante, ainda recebia “conselhos” do pastor da igreja que frequentava para “casar no papel” com seu agressor, já que, sem essa formalização do casamento, ela estava “vivendo no pecado”[7].

Sempre digo que ser financeiramente independente não nos exime de sofrer as diversas violências de gênero. Indo contra a lógica capitalista de emancipação unicamente pelo dinheiro, meu argumento é o de que a violência contra a mulher acomete vítimas de várias classes – apesar de as mulheres negras e pobres serem majoritárias -, já que é multifacetada, e perpassa a violência psicológica, a física, a sexual, a econômica, a patrimonial.

Contudo, é inegável o quanto a dependência financeira é capaz de “prender” uma vítima ao seu algoz. Uma das investigações da minha dissertação de mestrado foi saber se o controle do benefício recebido pelo Programa Bolsa Família (PBF) podia gerar ganhos marginais na vida das beneficiárias. E um deles era a obtenção de uma “independência financeira” que fosse suficiente para livrar as mulheres de relacionamentos abusivos e violentos.

Infelizmente, na sociedade em que vivemos, na qual o modo de vida individualista e completamente pautado em questões monetárias nos leva a buscar pelo dinheiro como forma de estrita sobrevivência, a dependência financeira é um enorme fator impeditivo, às vítimas de violência, para mitigarem tal situação.

Depois de ter me relatado suas histórias e suas vivências com tanta sinceridade, ela me implorou para que eu não fosse à polícia e denunciasse o seu agressor, pois, se ele ficasse sabendo, ele a colocaria “na rua” na mesma hora. Em determinado momento, o agressor fez questão de dizer para mim que ela não era a “mulher oficial” dele, e que ele estava com ela só porque a ex o havia deixado. Ele, claramente, tentava intimidar sua vítima em um perverso jogo psicológico de dominação/subordinação.

Eu falei com ela que ele não tinha esse direito, que a casa também era dela, e reforcei que ela não tinha culpa de nada do que acontecia, pois somente o agressor deve ser responsabilizado pelos seus atos. Reforcei que ela não “merecia apanhar”, em nenhuma circunstância, e que isso era ERRADO.  Ela passou a atenuar as violências ao dizer que ele só batia nela quando bebia ou quando ela “fazia alguma coisa que o desagradava”. Como as bebedeiras eram constantes, eu afirmei que não existe momento ou situação aceitável para que ele agisse com violência. E passei o meu contato, caso ela se sentisse constrangida ou ameaçada por ele – ela não sabe ler nem escrever, e usa o WhatsApp somente para o envio e o recebimento de áudios.

Eu iria embora dali a alguns dias e sabia que não poderia ajudá-la da melhor forma. Fiz a denúncia pelo Disque 180, mas não pude passar o endereço da residência. Nessas horas, nós nos sentimos de mãos atadas, e dormir tranquilamente fica cada vez mais difícil.

O mundo realmente é um lugar inóspito para nós mulheres, e ele se torna ainda mais hostil cada vez que descemos uma classe, quanto mais escura for a pele. Por mais que tentem descreditar as nossas pautas, as nossas lutas, relativizar as nossas conquistas e esconder os fatos, devemos sempre permanecer atentas, vigilantes, ativas, falantes, atuantes. Infelizmente, não consegui responder à pergunta do título. Para onde vão essas mulheres? Onde está o Estado para cumprir sua obrigação no combate à violência de gênero?

Que em 2022 façamos diferente.


[1] As mulheres negras são mais acometidas pelo desemprego, principalmente em momentos de crises sociais, econômicas e sanitárias. Segundo relatório da SOF (2020), 58% das mulheres desempregadas
são negras.

[2] Hirata e Kegoat, 2007

[3] Sabino, 2019

[4] Disponível em https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres/arquivo/assuntos/violencia/programa-mulher-viver-sem-violencia/servicos-disponiveis-na-casa-da-mulher-brasileira. Acesso em 28/04/2021.

[5] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/04/explosao-de-violencia-domestica-durante-pandemia-faz-pm-de-sp-implantar-patrulha-maria-da-penha.shtml?origin=folha. Acesso em 28/04/2021.

[6] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/03/governo-recebeu-105-mil-denuncias-de-violencia-contra-mulher-em-2020.shtml. Acesso em 28/04/2021.

[7] Não é incomum, nas comunidades evangélicas, o aconselhamento para a não separação, às mulheres que sofrem violência doméstica. Tal violência é bastante relativizada, em nome do cumprimento de regras criadas pelos membros e fundadores de tais igrejas. Também não é incomum que os próprios “pastores” sejam agressores, como vimos em um vídeo obtido pela imprensa. A violência é minimizada pelos papeis de gênero impostos, nos quais o corpo da mulher se torna propriedade do homem; e pelo “perdão” das vítimas, que colocam o “casamento acima de qualquer coisa”. Reportagem que contém o vídeo disponível em: https://revistaforum.com.br/brasil/video-de-suposto-pastor-agredindo-esposa-viraliza-nas-redes/. Acesso em 28/04/2021.