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O Bem Viver como alternativa ao desenvolvimento
O Bem Viver (Sumak Kawsay, em quéchua, Suma Qamaña, em aymara, Buen Vivir, em espanhol) é um modo de vida dos povos originários andinos, e encontram-se, atualmente, nas Constituições do Equador e da Bolívia. “O Bem Viver é, essencialmente, um processo proveniente da matriz comunitária de povos que vivem em harmonia com a Natureza” (Acosta, 2019, p. 21).
Da mesma maneira, o Bem Viver pode ser considerado uma cosmovisão, a partir da reunião de práticas ancestrais praticadas pelos povos indígenas, entre eles os Quéchuas e os Aymaras, que vivem na Cordilheira dos Andes (Krenak, 2020). Quijano (2013, p. 46) estabelece o Bem Viver como “[…] provavelmente, a formulação mais antiga na resistência ‘indígena’ contra a ‘Colonialidade’ do Poder”.
Podemos pensar no Bem Viver como uma utopia para um novo pacto civilizatório. Assim, o Bem Viver se apresenta como uma alternativa ao desenvolvimentismo ocidental, encabeçado por valores patriarcais, racistas, predatórios, etnocidas e ecocidas e que busca o tal do crescimento econômico a qualquer custo. “Nesse sentido, faz-se necessário superar a visão clássica do desenvolvimento como sinônimo de crescimento econômico perpétuo, progresso linear e antropocentrismo desmedido (Gudynas, 2011 apud Alcantara & Sampaio, 2017, p.32). Já para o Bem viver, “o tempo e o espaço não são lineares: são cíclicos” (Sólon, 2019, p. 19).
Conceitos como reciprocidade, complementariedade, relacionalidade, pertencimento, respeito e equilíbrio são a chave para a compreensão dessa visão holística de mundo. Assim, “o Bem Viver parte de uma visão cósmica ou holística de mundo (ESTERMAN,1989), na qual todos os seres, animados ou inanimados, viventes e não viventes, estão ligados entre si numa relação de interação e de completude mútua, cujo equilíbrio necessita ser mantido” (Ferreira & Freire, 2015, p.17).
De acordo com Sólon (2019), o Bem Viver se fortalece como pensamento e como uma alternativa ao desenvolvimento devido aos seguintes elementos:
- “Sua visão do todo ou da Pacha;
- A convivência na multipolaridade;
- A busca do equilíbrio;
- A complementariedade da diversidade;
- A descolonização.” (Sólon, 2019, p. 18).
Assim, é preciso que, finalmente, vejamo-nos como parte da natureza, da Mãe Terra (Pachamama), e não como ente que está fora dela, em estágio de superioridade. Nessa visão, as mudanças são sempre cíclicas, nunca lineares, e nós mudamos de dentro e em sintonia com a nossa comunidade e com o Planeta.
A convivência na multipolaridade nos alerta para a necessidade de compreendermos que nossa existência não se dá isoladamente, mas em um conjunto de relações. Portanto, só existimos e vivemos verdadeiramente bem enquanto pertencemos a uma comunidade.
A busca pelo equilíbrio vai além da harmonia entre os seres humanos, mas abarca a relação entre estes e a natureza, o mundo espiritual, os demais seres sencientes, as diferentes culturas e identidades, os vastos conhecimentos e as sabedorias diversificadas.
A complementariedade se baseia no conceito de alteridade, que é a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro e de valorizar as suas diferenças: é a valorização da diversidade, é a conceituação da equidade no lugar da mera igualdade formal.
Por fim, descolonizar vai muito além de deixarmos de sermos colônias na esfera política. A América Latina se tornou independente dos colonizadores europeus, mas a exploração, a espoliação e os pensamentos colonizantes se perpetuaram. Por isso, precisamos reconhecer e valorizar nosso passado, nossos ancestrais, nosso território, o que fornecerá insumos para produzirmos o conhecimento que não nos inferioriza e nos prende ao atual status quo.
O Bem Viver nas Constituições do Equador e da Bolívia e o neoextrativismo
Apesar de constar explicitamente nas constituições do Equador e da Bolívia, estes países continuam a não seguir os princípios do Bem Viver e ainda se amparam no desenvolvimentismo como princípio máximo econômico, político e social, o qual é materializado principalmente pelo neoextrativismo[1] e pela reiteração na produção excessiva de commodities. Para Gudynas (2011, p. 2)
[…] essa postura do desenvolvimento clássico continua vigente e, por sua vez, expressa uma confiança absoluta no progresso e na evolução linear da história. Um exemplo clássico desse modelo é considerar que os países latino-americanos como “subdesenvolvidos” devem cumprir etapas sucessivas imitando a trajetória das economias industrializadas. Dessa maneira, um amplo conjunto de reflexões sobre o Bem-Viver enfoca as falácias do economicismo convencional”.
A pressão para a produção de commodities leva à exploração da natureza, dos humanos e não humanos. A fome por terras do agronegócio e do extrativismo, juntamente de políticas endossadas até pelos próprios governos latino-americanos que buscam o “desenvolvimento”, causam uma imensa desterritorialização dos povos originários e de pequenos/as agricultores/as. A degradação ambiental deixa inóspitas as suas moradas, o que fere as suas condições materiais de existência.
O sistema capitalista naturaliza as externalidades negativas e os desastres ambientais e sociais por ele causados e nos cega quanto às alternativas a um outro arranjo político, econômico e social. Assim, “o liberalismo econômico se vê não como uma concepção teórica historicamente datada, mas como uma realidade ahistórica, atemporal e desvinculada de qualquer contexto sociocultural, passando a falsa ideia de que ‘assim sempre foi e assim será’” (Ferreira & Freire, 2015, p.12).
De acordo com Pablo Dávalos (2008, apud Ferreira & Freire, 2015, p.7) há cinco rupturas que afetam principalmente os povos da América Latina:
A fragmentação e separação do ser humano em relação à natureza, herança do advento do modelo racional cartesiano; a ruptura com a ética, na medida da incompatibilidade natural desta com a ideia de desenvolvimento e crescimento econômico; a ruptura com a história e cultura própria dos povos, dada a preferência do capitalismo pela homogeneidade; a ruptura causada pela própria economia na medida em que o seu crescimento importa em mais exclusão e desigualdade, e, por último, a ruptura causada pela colonização epistêmica, que impede os povos de enxergarem alternativas ao sistema.
Portanto, a promessa do progresso, do crescimento e do desenvolvimento econômico como solução para o “atraso” do denominado “Terceiro Mundo” apenas endossou a exclusão social das minorias e fez acumular e concentrar renda a um grupo privilegiado, dentro de países tão socialmente estratificados, enquanto a devastação e a degradação do meio ambiente permaneciam. Assim, como uma alternativa de sociedade pensada a partir de conhecimentos ancestrais indígenas, o Bem Viver “pode servir de plataforma para discutir, consensualizar e aplicar respostas aos devastadores efeitos das mudanças climáticas e às crescentes marginalizações e violências sociais” (Acosta, 2019, p. 27).
Diferença entre Bem Viver e bem-estar social e os binarismos
É também necessário diferenciarmos o Bem Viver do bem-estar cunhado pela sociedade capitalista e ocidental. O conceito de bem-estar está intrinsicamente ligado à sociedade de consumo, que encara a natureza como algo suscetível à exploração, que simplesmente fornece recursos infinitos e ilimitados, enquanto estabelece a superioridade da espécie humana e não reconhece a nossa interligação e a interconexão ela e com os demais seres. Para Ailton Krenak,
O bem-estar está apoiado em uma ideia de que a natureza está aqui para nós a consumirmos. Mesmo que a gente faça de maneira consciente e cuidadosa, mas tem um fundamento, uma ontologia, que sugere que nós humanos somos separados dessa entidade, que é a natureza, e que a gente pode incidir sobre ela e tirar pedaços dela (Krenak, 2020, p. 13).
Com a criação, pela modernidade, dos Estados-Nação, houve uma tentativa de homogeneização da sociedade, que só foi possível com a alienação, a dominação e o apagamento cultural dos povos originários. Portanto, é importante salientarmos que a inferiorização da natureza pela sociedade ocidental se dá pelo advento das ideias cartesianas, que estabelecem dicotomias, binarismos e hierarquizações, nas quais homem/branco/cishétero/ocidental/cristão/cultura-razão é diametralmente oposto e superior a mulher/negra-indígena/não-cishétero/não-ocidental/não-cristã/natureza-emoção.
Assim, o “progresso” e a “modernidade” estão ligados à cultura e à razão, enquanto o tradicionalismo e os saberes ancestrais estão ligados à natureza e ao sentimento e são, portanto, vistos como atrasados e inferiores. Se a natureza deve ser dominada para que o progresso do capital ocorra, tudo que é tido como biológica e naturalmente relacionado a ela também precisa sê-lo, como as mulheres e todos os povos não brancos e não europeus.
O Bem Viver como uma cosmovisão revolucionária e a celebração da diversidade
A consideração da Natureza como detentora de Direitos é uma característica revolucionária do Bem Viver, principalmente porque o sistema capitalista somente a vê de forma mercantilizada, como recursos infinitos que devem ser dominados e explorados até a exaustão. Ao respeitarmos a Natureza, reconhecermos seus limites, ao a considerarmos como sujeita de direitos, tomamos consciência sobre a interdependência, a complementariedade e a relacionalidade (Acosta, 2019, p. 56) entre os seres humanos, os demais seres sencientes e o meio ambiente.
Essas relações de “reciprocidade e solidariedade”, bem como a convivência harmoniosa entre os seres se dá “a partir do reconhecimento dos diversos valores culturais existentes no planeta” (Acosta, 2019, p. 22) Assim, ao considerarmos novas epistemologias, para além do eurocentrismo, podemos construir um mundo em que as relações de poder sejam mais horizontais.
Da mesma forma, podemos buscar que as organizações sociais sejam estabelecidas de forma comunitária (Op. Cit, p. 23), em que todos os seres são valorizados, de forma intrínseca e ontológica, respeitados e conscientes sobre a sua interdependência. Para tanto, é mister que superemos as desigualdades postuladas pelo sistema capitalista, patriarcal e colonial, materializadas no sexismo, no racismo, no etnicismo, no classismo, no eurocentrismo, no antropocentrismo e na colonialidade do poder, do ser e do saber (Maldonado-Torres, 2019).
Reconhecer e celebrar nossas matrizes originárias é a chave para superarmos o racismo – o maior responsável pela marginalização da população negra e indígena dos países latino-americanos – e para constituirmos um Estado verdadeiramente plurinacional, com uma organização social, política e econômica sociobiocentrada, equânime, sustentável, solidária, justa, em que “a diversidade não é apenas tolerada, mas celebrada” (Acosta, 2019, p. 113).

Referências
ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Editora Elefante, 2019.
ALCANTARA, Liliane Cristine Schlemer; SAMPAIO, Carlos Alberto Cioce, Bem Viver como paradigma de desenvolvimento: utopia ou alternativa possível? Desenvolv. Meio Ambiente, v. 40, p. 231-251, abril 2017.
GROSFOGUEL, Ramón. Para uma visão decolonial da crise civilizatória e dos
paradigmas da esquerda ocidentalizada. In: BERNARDINO-COSTA, J.; MALDONADOTORRES, N.; GROSFOGUEL, R. (org.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
GUDYNAS, Eduardo. Bem-Viver: Germinando alternativas ao desenvolvimento. América Latina em Movimento – ALAI, nº 462: 1-20; fevereiro 2011, Quito.
KRENAK, Ailton. Caminhos para a cultura do Bem Viver. Cultura do Bem Viver, 2020.
LACERDA, Rosane Freire; FEITOSA, Saulo Ferreira. Bem Viver: Projeto U-tópico e De-colonial. Interritórios| Revista de Educação. Universidade Federal de Pernambuco
Caruaru, BRASIL | V.1 | N.1 [2015].
MALDONADO-TORRES, Nelson. Analítica da colonialidade e da decolonialidade:
algumas dimensões básicas. In: BERNARDINO-COSTA, J.; MALDONADO-TORRES, N.; GROSFOGUEL, R. (org.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
SÓLON, Pablo [org]. Alternativas sistêmicas: Bem Viver, decrescimento, comuns, ecofeminismo, direitos da Mãe Terra e desglobalização. São Paulo:Editora Elefante, 2019.
QUIJANO, Aníbal. “Bem Viver”:entre o “desenvolvimento” e a “des/colonialidade” do poder. Fac. Dir. UFG, v. 37, n. 1, p. 46 – 57, jan. / jun. 2013.
[1] “O neoextrativismo é definido como um modelo de desenvolvimento focado no crescimento econômico e baseado na apropriação de recursos naturais, em redes produtivas pouco diversificadas e na inserção subordinada na nova divisão internacional do trabalho. Santos e Bilanez, 2014.