Foto: Carta Capital (Créditos)

Oi, oi! Estou sumida por falta de tempo (e de inspiração). Mas não podemos escrever somente quando estamos inspiradas. A escrita deve ser uma rotina e eu pretendo retomá-la…

A pobreza deve ser encarada como um fenômeno multifacetado. A sua conceituação está intimamente relacionada com a definição de riqueza, a qual, por sua vez, pressupões relações de poder e de controle de classes sociais. Com o advento do neoliberalismo e da financeirização de tudo, as desigualdades sociais se tornaram cada vez mais evidentes. A partir de cartilhas que demandam “disciplina fiscal” e austeridade, programas sociais que visam à mitigação dessas desigualdades são deixados de lado, já que a o destino prioritário do capital deve ser o pagamento de dívidas.

O Brasil prevê, em lei, o direito à renda básica universal incondicional a todo cidadão e toda cidadã. Levando em conta uma análise feita sobre a Renda Básica Cidadã (RBC), de Maricá, procuro saber se, de fato, a garantia desse repasse de renda seria a solução que nos falta para a mitigação da pobreza. Sabemos que a maior política de transferência de renda até então, o Programa Bolsa Família (PBF), era focalizada e condicionada. Não obstante, apesar de carregar consigo o conceito de universalidade, a RBC também é focalizada e, pelos valores repassados, estes possuem apenas um caráter de complementariedade de renda.  Ademais, questiono se o foco excessivo, das políticas públicas, em repasses financeiros, contribui para o endosso das lógicas capitalistas de mercantilização de preceitos básicos de sobrevivência; e reforça que as famílias e os/as indivíduos sejam responsáveis pelo seu próprio bem-estar.

A pobreza e a desigualdade social são problemas gerados pelo capitalismo e pelo progresso tecnológico. Com o domínio do capital financeiro e fictício, muitos países, inclusive os ditos subdesenvolvidos, passaram a apresentar situações de desindustrialização, desemprego, austeridade, desmonte do estado de bem-estar ou mesmo uma inexistência de condições para a sua implementação.  Isso gerou um excedente de mão de obra e uma dificuldade de acesso ao mercado de trabalho, o que é agravado com o atravessamento dos marcadores de diferenças que vão além da classe social, como a raça, o gênero, a etnia, o território, a geração.

Com a emergência da era do capital financeiro, houve a financeirização e a securitização de tudo. Tudo se tornou potenciais mercadorias, inclusive elementos básicos de sobrevivência, como a saúde, a moradia e a alimentação. De acordo com Sassen (2016), com o protagonismo do capital fictício, ocorre a securitização de setores não financeiros, e a liquidez passa a ser dada até ao que não é líquido, como ocorreu, nos EUA, com as casas por meio do subprime. Assim, como nos elucida a autora, quando o Estado decide se tornar austero, ele deixa de executar diversas políticas públicas que visam à mitigação da pobreza e ao enfrentamento das desigualdades sociais. Ao mesmo tempo, a desigualdade de partida não é enfrentada, pois quase nunca são estabelecidas tributações mais progressivas, sobre grandes fortunas, sobre as operações especulativas.

A partir dessa lógica da financeirização de tudo, até mesmo as transferências de renda, feitas na forma de repasses de dinheiro, tornam-se ativos “à disposição do sistema financeiro” (Lavinas, 2018, pág. 1). É importante lembrar que a pobreza não pode ser vista somente do ponto de vista financeiro e que apenas a transferência de recursos monetários não é suficiente para a mitigação da falta de outros acessos.

Contudo, na órbita dos direitos, podemos pensar que, com essa financeirização de tudo, inclusive de serviços essenciais, não seria ilógica a garantia de uma renda, na forma de dinheiro, que possibilitasse o acesso a serviços e a bens materiais a todos/as que fazem parte de uma sociedade que tem como base, para tudo, o sistema financeiro. A renda básica universal (ou cidadã, ou de cidadania) poderia, então, garantir o direito mínimo de existência e sobrevivência na sociedade capitalista. De acordo com Lavinas (2018), a ideia de uma renda básica universal é mais que um mecanismo de combate à pobreza. Ela escancara a nefasta acumulação e apropriação de riquezas e a privatização da natureza e de seus “recursos” por muito poucos (Lavinas, 2018, pág. 16).

A Renda Básica Universal é um direito individual, que não pressupõe quaisquer condicionalidades para o seu recebimento, e que visa a garantir uma liberdade material para todos/as os/as membros de uma sociedade constituída sob os moldes do capitalismo. O seu conceito não é novo, e está no debate e no centro de formulação de políticas públicas desde a década de 1960 (Lavinas, 2018). Algumas aplicações que obtiveram sucesso tornam-se referências e modelos a outras localidades desejosas de implementá-la. Um exemplo de sucesso no Brasil é a cidade de Maricá, RJ, com a sua Renda Básica Cidadã (RBC). O RBC é um programa de transferência de renda sem contrapartidas, com pretenso caráter mais universal, que abrange 26% da população de Maricá (Maldonado e Freitas, 2022). É necessário que a pessoa resida no município por pelo menos três anos e tenha cadastro no CadÚnico. O valor do benefício, em 2019, era de 130 mumbucas – moeda local virtual válida somente no município de Maricá, e que tem o mesmo valor nominal do Real. Na pandemia, o valor aumentou para 300 e, em 2022, está em 170 mumbucas (idem). Há um recorte de renda para que a pessoa se torne elegível – deve ganhar até três salários-mínimos -, o que retira, parcialmente, o caráter de universalidade, devido à alta focalização na parcela da população considerada mais vulnerável.

A nossa pesquisa mostrou que, um problema que ocorria com certa frequência, no Programa Bolsa Família, devido à focalização e às condicionalidades, eram os erros de inclusão e de exclusão. Como a maioria das beneficiárias não possui emprego formal, suas rendas sempre foram variáveis. Por vezes, em algum mês, elas ganharam um pouco a mais, o que poderia ser suficiente para torná-las inelegíveis. Já no caso das condicionalidades, muitas vezes, as mulheres não conseguiam levar as crianças à escola devido aos constantes tiroteios na Rocinha. Não era raro que seus benefícios fossem suspensos devido à frequência escolar insuficiente. Contudo, os motivos que levavam a isso estavam fora de seus controles.

Ademais, em uma perspectiva de gênero, no contexto neoliberal, em que as famílias são as maiores responsáveis pela busca e pela manutenção do próprio bem-estar, existe o que chamamos de “familismo” nessas políticas de transferência de renda, cuja principal característica é a “funcionalização” da mulher. Assim, há uma cobrança demasiada, à mulher, para que ela cumpra as condicionalidades e as contrapartidas que garantem a continuidade do recebimento do benefício. Portanto, os desvios da condicionalidades levam a penalidades e à responsabilização individual pela própria pobreza e pelos infortúnios que cercam a vida dos/as indivíduos/as (Lavinas, 2018).

Apesar de a renda básica universal poder ser vista como um poderoso instrumento de combate às diversas desigualdades sociais, nas políticas públicas existentes, como o RBC e o PBF, os repasses têm sido mais baixos, e são incapazes de assegurarem os direitos básicos fundamentais, como saúde, educação, moradia, alimentação. Portanto, nos desenhos atuais, é impossível que essa renda se torne a única renda da/o beneficiária/o, e ela tem sido encarada mais como uma “renda complementar garantida” (Sabino, 2019).

Lavinas (2018) ressalta que a ideia de uma renda mínima universal está presente em quase todos os programas de presidenciáveis, inclusive daqueles de direita e extrema-direita, mas quase sempre de forma esvaziada e sem aplicabilidade cabível. O conceito deve, então, voltar a seu campo de origem, que é o da esquerda progressista, que visa a uma emancipação em relação às práticas mercantis e que permite que todos/as os/as indivíduos vivem uma vida boa, ou uma “vida genuína, como enfatizou Amartya Sen” (Lavinas, 2018, pág. 17).

A ausência do anacronismo das condicionalidades, da ideia de “merecimento” pelo recebimento dos benefícios (como no caso do PBF), da necessidade de alguma contribuição prévia (como o seguro-desemprego) é um avanço trazido pela ideia da universalidade, principalmente no contexto em que vivemos, de uma absurda desigualdade de gênero e de uma de alta informalidade no mercado de trabalho. Porém, precisamos ter cuidado com as escamoteações que possam estar por trás do uso indevido desse conceito, que são “simplificação administrativa, redução dos custos de inconveniência e da uniformização de um benefício de piso básico, característica essa assimilada como universal” (Idem).

Outro desvio que pode ocorrer, principalmente quando a ideia é apropriada pela direita e pela extrema-direita, é um desmonte de várias políticas assistenciais e a criação de uma suposta renda básica única, a qual não deixaria de estar limitada a um teto baixo. Com a eliminação dos demais benefícios, isso pioraria ainda mais a situação da população mais pobre. Esse movimento seria, na verdade, uma busca para um gestão fiscal mais simplificada e austera. Infelizmente, isso já ocorreu no atual governo, com a criação do chamado “Auxílio Brasil” e do desmantelamento do Programa Bolsa Família, o qual, apesar de algumas imperfeições, era uma política assistencial integrativa e que abarcava a mitigação da pobreza sob diversos ângulos, para além do financeiro. Como exemplo, em nossa pesquisa, no CRAS Rinaldo de Lamare, além da integração com serviços básicos de atenção à saúde, de creches e de escolas, havia a oferta de diversos cursos de capacitação às beneficiárias do PBF, os quais foram bastante utilizados e elogiados pelas mulheres com as quais conversamos (Sabino, 2019).

Assim, é preciso que as políticas de transferência de renda não sigam apenas a lógica do consumo e não sejam cooptadas pelo mercado financeiro, o que dar-se-ia com o endividamento das famílias receptoras, que cada vez mais encontram serviços e produtos essenciais somente no setor privado. Ademais, é mister ressaltar que as políticas assistenciais baseadas em transferências de recursos, sejam elas condicionadas ou incondicionadas, não podem suprir a presença e a atuação do Estado no provimento de serviços básicos e essenciais, nas esferas da produção e da reprodução da vida. No caso das beneficiárias do PBF, é urgente a maior oferta de creches e de escolas em tempo integral. E um bom exemplo na RBC de Maricá é o que o programa tem sido combinado com outras políticas sociais, como o fornecimento de transportes públicos gratuitos, como ônibus e bicicletas.

Referências Bibliográficas

LAVINAS, L. (2018). Renda Básica de Cidadania: a política social do Século XXI? S. Paulo: Fundação Friedrich Ebert, 25 p. (Análise 47/2018).

MALDONADO, Jéssica; FREITAS, Fernando. Análise de valência das políticas de
transferência de renda de Maricá.
UFF, 2022.

SABINO, Luíza Wehbe. A pobreza feminina e as políticas públicas: um estudo à luz do programa bolsa família na Rocinha – Rio de Janeiro. UFMG, 2019 (Dissertação de Mestrado).

SASSEN, Saskia. Expulsões. Brutalidade e complexidade na economia global. Rio: Paz e Terra, 2016.

STEWART, F., LADERCHI, C.R. & SAITH, R. (2010). Introduction: four approaches to defining and measuring poverty. In Stewart, F. Saith, R. & Harris-White, B. (eds.). Defining poverty in the developing world. Hampshire (GB), Palgrave MacMillan, p. 1:35.

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