Foto: Ceert (Créditos)

É normal a gente ter interesse em saber sobre a nossa ascendência. Mais legal ainda é poder saber exatamente de onde vieram nossos ancestrais, o que não acontece com grande parte da população descendente de imigrantes não europeus, por exemplo.

Somos um país colonizado cuja população originária foi dizimada e completamente impossibilitada de viver harmonicamente em sua própria terra. Hoje em dia, a população indígena é tão invisibilizada que nem nos damos conta da profunda exclusão que essas pessoas sofrem. Os ameríndios brasileiros tem que ser tutelados pelo Estado (União), como se fossem mesmo um tipo de patrimônio a ser preservado, ou melhor, aquilo que restou a ser preservado. Difícil encontrar pessoas por aí que defendam a causa indígena em relação à demarcação de terras, por exemplo.

A visão de mundo construída no Brasil é completamente europeizada. A História que estudamos como disciplina na escola é eurocêntrica, e não à toa que recentemente foi determinado que incluísse História da África como tema obrigatório. Mas isso é recente e, obviamente, o decreto foi editado durante um governo de caráter mais progressista.

Ainda assim, não adianta um decreto com boas intenções se é tão mais difícil encontrar especialistas em História da África; se é tão mais difícil também contar a história por uma visão que não a hegemônica, justamente porque a eurocêntrica se tornou quase que a única visão possível, que contribuiu para apagar ou dificultar o acesso à história contada pelos descendentes de escravos, pelos povos indígenas, por aqueles que foram massacrados, dizimados e excluídos durante a formação da sociedade brasileira.

Se tem algo que me deixa raivosa é saber que a tentativa de embranquecimento da população brasileira, além de ter sido, literalmente, uma política institucionalizada, foi feita a partir de, literalmente, estupros de mulheres africanas, incentivo à imigração de brancos e barramento de outras etnias, e é claro, a própria ideia que levou à política, a necessidade de embranquecer para ser uma “sociedade melhor” me deixa profundamente preocupada. Esse embranquecimento é responsável pela tentativa da completa aniquilação da cultura africana e é também responsável, a meu ver, pela dificuldade que muitas pessoas possuem de se reconhecer como afrodescendentes (como, por exemplo, minha família por parte de pai).

A população branca se reconhece, orgulhosamente, como branca. Acho legal ver tantos descendentes de italianos, por exemplo, contarem sobre a história de suas famílias, apontarem exatamente a cidadezinha onde os avós ou os bisavós nasceram, conseguirem cidadania italiana, reproduzirem festivais, a gastronomia, as músicas, aqui no Brasil.

Um branco não tem (aparentemente) tanta dificuldade de se assumir e reconhecer como branco. Mas isso não acontece sempre com os descendentes de africanos.

Vamos falar de mim

A começar, eu não sei exatamente a linhagem do meu avô paterno. Provavelmente seus ascendentes foram sequestrados em algum território da África e trazidos à colônia para serem escravizados. Eles foram tratados, como sabemos, como mercadorias, num regime permeado por tanta maldade, tanta crueldade, tanta soberba, tanta falta de humanidade.

Falar sobre racismo no Brasil nunca deveria ser um tabu, pois nós tivemos quase 400 anos de escravidão. Isso não foi inventado, isso era institucionalizado, estruturado, assim como o é o racismo nos dias de hoje. O racismo não é algo que parte do individual e sim da sociedade em seu todo. Somos todos responsáveis por sua reprodução. A pessoa que sofre com o racismo nunca irá “se vitimizar”, ela é a vítima da sociedade e de seu sistema, ela não inventa isso.

O Estado realizar políticas afirmativas de inclusão social (seu dever constitucional) não está adotando uma posição vitimista, como dizem alguns, mas simplesmente está reconhecendo os séculos durante os quais exclui, condenou, escravizou, assassinou uma determinada etnia, que é a negra (também a indígena). A política de cotas, por exemplo, reconhece isso, e não coloca, de forma fantasiada, o negro ou a negra em uma situação inferior: a população negra está em desvantagem SIM por conta de todos esses anos de exclusão social, que apenas se agravou com a abolição da escravidão. O problema não é individual, mais uma vez, ele é estrutural. A política de cotas não inferioriza o negro, não presume que sua inteligência seja inferior, nada disso, apenas reconhece que sim, o acesso à educação por essa população não é a mesma da população branca, simplesmente não é. Algo tem que ser feito para reparar esses erros e isso não acontecerá de forma natural, ou benevolente por quem está no poder… Não vai. As cotas são necessárias e urgentes, sim!

Eu escrevi um texto sobre as cotas raciais e diferenciei igualdade e equidade.  🙂

Voltando, então, à pesquisa sobre minha ascendência

É muito comum tratarmos sempre a África como uma coisa só, esquecendo-se de toda a sua complexidade, sua diversidade, sua história contada pela sua própria população.

A divisão que vemos hoje da África em países foi completamente arbitrária, feita por europeus na época da colonização africana, a partir de interesses advindos puramente dos colonizadores, o que aniquilou completamente o curso da história dos povos africanos, subestimou-os ao ponto de não poderem ser mais os protagonistas de suas próprias histórias. Interferiram completamente em suas culturas, impuseram idiomas, religiões, modos de ver e de viver.

Porém, como eu nasci e cresci em uma cultura europeizada, vi tantos coleguinhas falaram de quais países vieram seus avós, eu também queria saber de qual país vieram os ascendentes do meu avó.

Uma vontade, talvez, impossível de ser satisfeita.

Primeiro, a ideia de Estado-Nação é muito ocidental, não era realidade para os povos africanos, por exemplo, que, escrevo por alto, ainda se encontravam em regimes de tribos e clãs (mas houvera outros tipos de civilização também, como o Egito Antigo…). Segundo, a divisão posterior em países foi arbitrária e exterior aos próprios povos locais, então, um país que passou a existir no século XX não existia antes, não tinha o nome que tem, nem o território, nem a organização, nem mesmo a mesma população anterior. Terceiro, a história não foi documentada a partir da visão dos africanos, não há registros, e, se houve, estes podem ter sido apagados.

Mas calma, nem tudo são ruínas. Pude saber, a partir de uma tia que tem mais conhecimento sobre a história da família, sobre o meu avô, meus bisavós, já estabelecidos aqui no Brasil. Nomes e sobrenomes, importância política, linhagem influente… Tudo isso já aqui no Brasil.

Talvez eu quisesse algo mais distante, como eu sei exatamente de onde vieram minha avó e meu avô maternos. Eles eram libaneses, de uma cidade próxima à capital Beirute. Vieram tentar uma vida melhor aqui no Brasil. Minha mãe tem sua ascendência completamente libanesa.

Já eu, como muitos, tenho uma miscelânea de ascendências, pois meu avô paterno era afro-descendente e minha avó paterna tinha ascendência indígena e portuguesa.

O negócio é o seguinte…

Muitas pessoas ficam em dúvida quanto ao que declarar no campo “Raça/etnia” do IBGE exatamente porque têm em suas ascendências um bocado de coisas, e as coisas podem ter origens distintas.

Eu volto no tal do embranquecimento porque eu sinto que ele é responsável por muitos negros e muitas negras terem dificuldades de se reconhecerem como tais, porque a linhagem não é única (como a de minha mãe, que é, digamos, 100% libanesa, até onde eu sei).

Será que minha família paterna tem dificuldades em declarar sua afrodescendência porque minha avó já não era negra e suas peles são mais claras, seus traços são mais finos e seus cabelos, que não são lisos, porém são fáceis de alisar?

Será que, pelos negros brasileiros possuírem, já lá de longe, essa marca do embranquecimento, o que não aconteceu, por exemplo, com os negros dos EUA, eles tenham essa dificuldade de auto-reconhecimento?

Mas será que isso acontece com frequência com as pessoas de pele branca, olhos claros, mesmo que tenha havido, em algum momento, alguém na família de etnia africana ou indiana… Acho que não.

Será que, pela possibilidade de adoção, pelo oprimido, da visão do opressor, declarar que se é negrx tenha sido, por tantos anos, algo a ser evitado, algo que faça sentir uma espécie de vergonha, algo a ser visto como um tabu?

É por isso que é maravilhoso ver o empoderamento negro acontecendo no Brasil. Talvez isso que eu questionei possa ser, finalmente, superado, na individualidade de cada um (no reconhecimento da etnia) e em sociedade.

No fim das contas…

Sei que compartilho essa dificuldade com muitos brasileiros e muitas brasileiras. Nossa realidade, devido muito ao embranquecimento populacional dos negros, não pode ser algo que também impeça de enxergamos o quão racista é a sociedade brasileira, o quanto os negros foram excluídos de espaços ditos elitizados, como a universidade, os empregos mais qualificados, a moradia em lugares mais centrais, restaurantes ditos gastronômicos…

O mito da “Democracia Racial” tem que ser quebrado, pois existe racismo sim, todos os dias uma pessoa negra sofre com injúria racial, mesmo que não tenhamos codificado esse Racismo, como os EUA fizeram, por exemplo, mesmo que o tom de pele dos negros e das negras brasileiras possam se apresentar, em alguns casos, como mais “claros” (odiei escrever isso, mas não pensei em outra forma), mesmo que os traços possam ser mais finos, mesmo que os cabelos possam ser mais para cacheados do que para crespos…

A lei de cotas de concursos, por exemplo, coloca que as cotas são para pretos ou pardos, em conformidade com a realidade que nos acomete, mas que, reitero, nunca deve ser usada para isentar o racismo estrutural e institucionalizado da sociedade brasileira.

Dessa forma, depois de buscar saber sobre minha ascendência e tudo, eu sempre me declaro como parda, mesmo sabendo que o meu tom de pele tende a ser próximo ao branco…

Talvez eu tenha tentado juntar Oriente Médio (Líbano) + Brasil (Indígena) + África!

E esse reconhecimento é importante e necessário, ainda que possa ser trabalhoso, o que, mais uma vez, pode não acontecer para alguém de ascendência europeia e que se declara como brancx.

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